1. Eis os postulados mais elevados do Yoga.
2. O yoga é o recolhimento [.nirodha] dos meios de expressão[vrttis] da mente [citta];
Sutra I, 2 Vittis, que chamamos aqui de “meios de expressão”, podem ser descritos como os desdobramentos materiais de citta. Quando estão vinculados ao mundo manifestado, criam a consciência e a ilusão de separatividade, trazendo para a nós a idéia de que observador e objeto observado são entidades distintas. Quando são “recolhidos” levam a consciência à percepção de átman nos objetos observados, o que elimina qualquer possibilidade de separatividade, destruindo desta forma a raiz de todo sofrimento.
3. Então “aquele que vê” [drastr, o percebedor] se manifesta em sua natureza mais autêntica; 4. Nesta outra [condição, está] perfeitamente adequado aos meios de expressão [vrttis].
5. Os meios de expressão formam um conjunto de cinco, tanto na condição perturbada quanto na não perturbada. [veja-se o sutra 3 do capítulo 2, que trata das perturbações (kleças)] 6. [Os meios de expressão da mente (citta) são chamados:] evidência [pramáña], inventividade [viparyaya], imaginação [vikalpa], sono [nidrá] e memória [smiti].
7. As evidências [pramáña] são a percepção direta (física), a inferência (mental) e o testemunho.
8. Inventividade [viparyaya] é um conhecimento derivativo que leva a formas que não são aquela [que originou o conhecimento].
Sutra I, 8 Embora a quase totalidade das traduções prefiram entender viparyayas como “engano”, “conhecimento errôneo” ou algo no gênero, preferimos uma abordagem diversa. Nenhuma expressão de citta, considerado este como o aspecto mais elevado da mente humana, poderia representar necessariamente uma prática de erro ou engano, exceto quando manifestado sob condições adversas.
9. Imaginação [vikalpas] é o resultado do conhecimento adquirido pela palavra, desprovido de existência real.
[é interessante notar que a imaginação aqui tem um poder de criação semelhante àquele que lhe atribuíam os alquimistas ocidentais. É o poder do verbo criador, razão pela qual o autor utiliza o termo çabda (palavra), a poderosa força mobilizada pela deusa Sarasvati – conforme narrado no ánugítá.] 10. O sono [nidrá] é um meio de expressão sustentado pela experiência de não existir.
Sutra I, 10 A raiz sânscrita drai, de onde vem a palavra para sono, traz consigo um sentido que envolve o conceito de ausência, inconsciência, adequado à comparação com a não-existência. Tem a semelhança do sono da morte, ou da profunda transformação na aparência exterior de um yoguim em meditação, que parece ausente do seu próprio corpo. Patañjali não faz referência ao sono como o estado de consciência alterado em que ainda temos algum tipo de percepções, sonhos, etc. Para este último ele teria utilizado o termo svapna, que o define precisamente (como faz em I,38 com “svapnanidrá”). O uso de “nidrá” para um meio de expressão de citta, indica uma situação em que o indivíduo produz, voluntariamente a condição de não existência, seja durante a meditação, ao se abstrair totalmente da personalidade para mergulhar na unidade absoluta, seja no caso em que deixe de representar o papel de sua própria personalidade para tornar-se uma outra, que pode ser conceitual – como o juiz encarnando as leis – ou imaginária – como o ator representando uma personagem de ficção 11. A memória [smiti] é a retenção (não-perda) do objeto percebido.
12. Seu recolhimento [ou seja, o nirodha desses cinco meios de expressão] advém da disciplina e do desapego.
13. A disciplina é o esforço em permanecer nele [nesse recolhimento].
14. Ele [o recolhimento], então, praticado assiduamente com atenção e continuidade por um longo tempo, torna-se uma condição consolidada.
15. O desapego é o sinal da vontade perfeita daquele que está indiferente aos objetos já vistos ou dos quais se ouviu falar.
16. Em decorrência disso, [o desapego] é a indiferença às qualidades materiais [guñas] das coisas nas quais o espírito [Puruõa] se revela.
17. Um conhecimento intenso [samprajnáta] surge a partir de: suposição [vitarka], avaliação [vicára], sensação de realidade [ánanda] e da percepção da própria individualidade [asmita] (como uma existência separada de todas as outras). [A partir daqui, até o sutra 22, o autor traça a origem desse conhecimento intuitivo a partir de práticas intelectuais] 18. Outro [samprajnáta] é resultante de hábitos mentais [samskáras] cultivados a partir da disciplina na experiência da “ausência”.
19. É a certeza de continuar existindo daqueles que jazem incorpóreos na terra espiritual [prakqtí].
20. O [samprajnáta] de outros tem sua origem numa percepção intuitiva [prajñá] durante o estado de samádhi retida pela memória [smiti], pela vontade [vírya – firme disposição] e pela fé. [São as reminiscências. Essas percepções obtidas durante o Samadhi se desvanecem tão logo a consciência retorna – tal como ocorre com os sonhos. Podem ser retidas, no entanto, por um esforço de memória, vontade e fé] 21. [O samprajnáta] está próximo [quando há] intensas inquietações.
22. Do fato de sua medida ser delicada, média ou muito intensa, daí justamente vem a diferença.
23. Ou [o samprajñata surge] da entrega ao Senhor interior [Íçvara]. [A partir deste sutra, até o sutra 29, estamos tratando da via inconsciente para a obtenção do conhecimento intuitivo].
24. O Íçvara é um aspecto do Purußa, e portanto não é afetado pelos repositórios dos resultados das ações.
[Os efeitos de nossos atos são armazenados junto ao nosso organismo psíquico, e afetam seu funcionamento. Içvara, porém, é de natureza espiritual [Puruõa] e não está sujeito às suas influências. – Veja-se, em relação a este sutra, o conteúdo de II,12] 25. Repousa ligada a ele [ao Íçvara] a semente de todo o conhecimento [possível].
26. É verdadeiramente o mestre dos antigos, pois não está limitado pelo tempo.
27. O prañava (a sílaba mística “OM”) é a sua expressão.
28. Recitá-lo é fazer surgir o seu sentido [na mente do recitador].
Sutra I, 28 Traduzimos artha por “sentido” neste sutra, embora a palavra tenha mais freqüentemente o uso de “objetivo” ou “finalidade”. Optamos por esta forma porque o Íçvara não surge na mente do recitador com um objetivo, mas apenas como um sentido, um “vira-ser” que aponta para o seu dharma (condição espiritual, vocação).
Sutra I, 31 (próxima página) É importante chamar a atenção para a inclusão dos movimentos respiratórios como sinais externos das dispersões de citta. De acordo com o sistema do Yoga, a respiração pode ser dividida em quatro fases: inspiração, pausa com retenção do ar, expiração e pausa com os pulmões esvaziados. Esta última fase é considerada a mais adequada para o esfor- ço de concentração. No processo natural de relaxamento e introspecção, as duas pausas crescem em duração e se tornam maiores que as fases com movimento
29. Disso vem a introversão da inteligência e a dissolução dos obstáculos. [Veja II,10 – as perturbações, quando a mente gravita em direção a citta (em atitude de recolhimento), desaparecem; da mesma forma, aqui, buscamos elevar nossa inteligência para uma esfera mais sutil de atuação buscando o Íçvara como referencial. Por isso os obstáculos se dissolvem.] 30. Os obstáculos [antaráyás, “limitadores”] são as [nove] dispersões da mente [citta]: doença, insensibilidade, dúvida, negligência, imobilismo, desinteresse, divagação, não-realização e instabilidade.
31. Dor, desespero, agitação dos membros, inspiração e expiração aparecem junto com essas dispersões.
Sutra I, 31 Inspiração e expiração, conforme aparecem nesse sutra, não representam apenas a respiração ofegante, mas representam as duas fases de movimento da respiração, consideradas inferiores às duas fases de repouso que há entre elas. (veja o outro comentário, na página 45)
32. Para evitá-las, exercita-se um único princípio [tattva].
[esse tattva é átman, conforme o que aparece no aforismo 47, adiante]
33. O assentamento [tranqüilização] de citta se demonstra pela amizade para com o feliz, compaixão com o sofredor, alegria com o virtuoso e indiferença com o malvado. [A partir deste sutra, e até o sutra 41, o assunto é a tranquilização – prasad – de citta].
34. Ou então [se demonstra] por meio da expulsão e do controle do práña (sopro vital) Sutra I, 34 Práña é sinônimo de atividade. Expulsar o Práña é o mesmo que buscar um estado de repouso Controlar o Práña é a capacidade de controlar as forças do comportamento para que obedeça à vocação interior
35. Ou produzindo a estabilidade da mente que surge de uma transformação relacionada aos objetos perceptíveis [os objetos passam a ser percebidos sem interferência dos pensamentos limitados ao mundo objetivo]
36. Ou [é] o brilho [celestial] que liberta da dor. [Esse brilho, jyotis, é o brilho dos astros noturnos, relacionado ao espírito e à inconsciência] Sutra I, 36 Esse brilho, jyotis, é o influxo astral relacionado à nossa vocação. Pode se dizer que é a luz das estrelas de nossa carta natal astrológica indicando os caminhos que levam à realização de nosso dharma. Conforme Krishna fala para Arjuna no Bhagavadgita, quando agimos em conformidade com o dharma, não há sofrimento. É a divindade suprema que age por nosso intermédio. Como poderia haver dor, que é o sinal do errôneo, num ato que está perfeitamente correto, como todo ato baseado em nossa vocação espiritual?
37. Ou é [demonstrado pela presença de] citta, em rela- ção ao apego aos desejos [porque citta só se manifesta quando não está presente o apego].
38. Ou é oriundo [o assentamento da mente] do saber que vem dos sonhos em sono profundo [quando silenciam as interferências externas na produção dos sonhos, e estes passam a refletir a sabedoria serena do samprajzata].
39. Ou então provém da meditação [dhyána] no que é agradável [por corresponder à vocação].
40. O controle sobre isto [do assentamento de citta] se estende desde o infinitesimal ao imensamente grande.
Sutra I, 40 Ao exercitar um único tattva, que é a individualidade universal, atman, o yoguim se identifica plenamente com cada objeto (viõaya), tornando-se integrado a todos eles. O domí- nio que ele passa a ter sobre suas forças interiores se converte em controle sobreas forças que movem todos os fenômenos materiais, das menores partículas (añu) aos corpos celestiais 41. Encontra-se o colorido da jóia [mañi], nascida em conseqüência do enfraquecimento (material) das vrttis, com aquele [mesmo colorido] que está no observador, nos órgãos sensoriais e nos objetos observados. [a gema preciosa representa tradicionalmente a alma individual espiritualizada] 42. Daí, a razão [savitarka] combina-se perfeitamente com a imaginação [vikalpa] aplicada ao conhecimento aprendido com palavras. [Ao romper com a lógica racional, a imaginação liberta o pensamento dos limites do mundo material, abrindo caminho para o samádhi] 43. A negação da razão [nirvitarka], [que servirá] para a purificação da memória [smiti], é semelhante a um referir-se às coisas que na verdade não levasse em conta suas peculiaridades [externas, grosseiras].
[Purificar a memória é torná-la apta para trazer para a consciência as reminiscências da percep- ção sutil, que normalmente se desfazem ao contato com nossos pensamentos].
Sutra I, 43 Note que a memória foi descrita em I,11 como a retenção do objeto percebido. A purificação da memó- ria é, por conseguinte, a eliminação dos aspectos inferiores desse objeto retido, e que são os detalhes percebidos pela mente mais grosseira. O processo de purificação é referido em II,21 que explica que o objetivo do percebedor é encontrar o átman nos objetos percebidos, o que também se confirma em I,47 [Sa-/Nir-] Vitarka: Pensamento lógico, baseado nos objetos e nas palavras.
[Sa-/Nir-] Vicara: Pensamento com que se elabora conceitos abstratos ou julgamentos de valor e mérito, sem a necessidade de referência a objetos materiais.
[Os prefixos Sa- e Nirsignificam “com” e “sem”] 44. Da mesma maneira, são explicados, numa esfera mais sutil, a abstração [savicára] e sua negação [nirvicára]. [Para poder dispor das impressões sutis trazidas à sua mente e fruir da plenitude do estado de Samadhi, o yoguim precisa aprender a prescindir até mesmo dos modos de pensamento mais abstratos].
45. E [certamente] o próprio conceito de esfera mais sutil termina no que não tem mais sinais perceptí- veis [isto é, aquilo que não pode ser percebido ou observado].
46. Este é de fato o samádhi com semente.
Sutra I, 46 O samádhi é descrito aqui como uma condição dinâmica da mente em que gradualmente o praticante descobre o átman em cada objeto ao qual empresta sua aten- ção. Eles passam a ser partes de um corpo vivente, inteligente e dotado de consciência, que é o Íçvara, um reflexo elevado de nossa própria individualidade. Cada objeto, torna-se, junto a Íçvara, uma semente de conhecimento (ver I,25) e o ponto de partida de pensamentos encadeados em direção ao abstrato e ao infinito 47. Na utilização habilidosa do nirvicára, o átman se assenta [junto à consciência] em sua condição superior [adhyátman].
48. Lá, ele é aquele que possui o conhecimento verdadeiro [prajzá].[Veja I,25 – a semente de todo o conhecimento (sarvajña bijam) está ligada ao Íçvara]
49. É uma outra natureza [de conhecimento], que não a daquele obtido por dedução ou revelação, mas que provem de causas diferentes.
50. O samskára que nasce daí interrompe outros samskáras.
Sutra I, 50 Cabe esclarecer aqui que o samádhi é uma condição de elevação da consciência que se obtém através de uma prática continuada, persistente e somada ao desapego. Por isso podemos dizer que ele próprio é, seguramente um hábito mental cultivado, um samskára. Na verdade é o mais elevado de todos, que se sobrepõe e interrompe todos os demai 51. O que surge do recolhimento total, dentro deste recolhimento, é o samádhi sem semente. [É a condi- ção em que não há mais objeto e observador. Onde o átman se assenta por si só, de modo que o samádhi não é construído, mas apenas existe].
Assim se completa o primeiro capítulo, chamado “Samadhi” no tratado sobre Yoga de Çri Patañjali, na doutrina do Samkhya.
Continua…