Sutras IV – Isolamento.

1. Os siddhis podem ser alcançados por nascimento, por ervas medicinais [osadhi], por mantras, pelo Tapas ou por Samádhi.

Sutra IV, 1 Os siddhis, que foram descritos no capítulo anterior, são o resultado da movimentação de forças oriundas do inconsciente (citiçakti – veja sutra IV, 34). Eles são também as causas operativas do pariñáma. Podem ser acionados de diversas maneiras, conforme descrito neste sutra, mas também ocorrem espontaneamente na maté- ria fundamental, a Prakrtí, (conforme sutra IV, 2). Nesta última hipótese esses siddhis não são decorrência das ações (karman) nem estão sujeitos a elas

2. A transformação [pariñáma] (que leva a) outro nascimento provém de excessos em Prakrtí.

3. A característica de Prakrtí, por conseqüência, é ser tão sem resultados [aprayojaka] quanto quem põe agricultores numa encosta erodida.

4. Os cittas criados pela mente [nirmáña] surgem do que é desvinculado [amátra] da egoidade [asmita].

5. Um único citta dentre muitos é aquele que promove [prayojaka] uma ruptura no impulso das vittis.

6. Ali está o coração da mente [manas], que nasce da meditação [Dhyána].

Sutra IV, 4 a 6 A mente é o instrumento da ação consciente. No entanto, pode nos levar a agir movidos por vontades que não são nossas. Para nos tornarmos donos de nossas próprias ações precisamos descobrir o verdadeiro “eu” (citta) que anima nossa mente. Ao realizar a meditação proposta pelo sistema do yoga, desenvolvemos nossa verdadeira identidade, descobrimos o coração de nossa mente, o centro espiritual de nossa alma e de nossos atos.

7. Nem brilhantes nem obscuras são as ações dos yoguins. De três modos são as dos outros. [As ações movidas pelos estímulos mundanos estão sujeitas às qualidades (guñas) próprias da matéria].

8. São, portanto, quando amadurecem, a manifestação das inclinações [vásanás] correspondentes às qualidades [guña] de cada um. [Os vásanás são pensamentos comuns, orientados por desejos e não originados da inspiração de citta (não espiritualizados), que se baseiam na memória e são movidos pelos samskáras.].

9. Ainda que se diferenciem nos tipos, no espaço e no tempo, os vásanás vão se sucedendo da mesma forma que os samskáras e a memória.

10. E sua evocação [dos vásanás, pelos samskáras e pela memória] nunca teve um princípio [anáditva], em razão de ser contínua [ou seja, eterna].

Sutra IV, 10 A idéia de eternidade expressa pela palavra anáditva implica na ausência de um início conhecido, mas não significa que não possa terminar.

11. A relação de proximidade entre causa e frutos produz uma forte dependência da qual decorre o fato de que se não existem estes [os “frutos”, os vásanás]. é porque também não existe aquele [o conjunto dos samskáras e a memória].

12. Passado e Futuro existem, à sua maneira peculiar, [apenas] como uma ruptura no curso de realização dos dharmas.

Sutra IV, 11 e 12 Os pensamentos mundanos ocupam cada vez mais a nossa mente, pois prendem-se à nossa memó- ria, determinando como entendemos o nosso passado, e também aos nossos hábitos, criando uma linha de dependência para nossos atos futuros.

O futuro e o passado se revelam apenas através das ações realizadas no mundo material, e sua qualidade depende da identidade ou dissemelhança que mantêm com a condição natural, dharma, de citta.

13. [Essas condições] são visíveis ou sutis, com a mesma natureza dos gunas (qualidades da matéria).

14. A aparência externa exibida pelas coisas é produto de uma série única de transformações (evolução).

15. Se um mesmo objeto é percebido de maneiras diversas, é porque os cittas são muito diversificados.

16. A aparência do objeto, no entanto, não é a elaboração [tantra] de um único citta, pois o que seria ele então se não estivesse sendo percebido?

17. As aparências são conhecidas [jnata] ou desconhecidas de citta, conforme o colorido que lhe imprimem. [Este sutra explica, em seu estilo conciso, que a percepção do mundo por citta não acontece pela identificação consciente e intelectual de características distintivas dos objetos. Ela é, na verdade, vivencial. Citta se identifica com o próprio objeto, tornando-se ele mesmo, incorporando o seu colorido, ou seja, suas características diferenciais.].

18. As vittis de citta são sempre conhecidas do Purusha, pois não sofrem transformações.

19. Citta não tem expressão própria [svábhása], pois [para isso] ele precisaria ter visibilidade [drçyatva – isto significa que se tornaria um objeto de percepção, podendo ser conhecido conscientemente por outro citta].

20. E citta não pode concentrar-se em duplicidade, num único momento [samaye].

21. Na visão de citta por um outro citta, haveria uma confusão entre o percebedor e o que deve ser percebido, e se confundiriam também as memórias.

22. Então, a partir da interrupção da intensa movimentação do “pensar” [citti] de citta, [surge] a vivência da percepção de si mesmo [svabuddhi], na transição para uma condição ativa.

23. O colorido tanto no observador quanto no observado, é citta, em sua totalidade.

Sutra IV, 18 a 23 Esses sutras entranham uma discussão de ordem metafísica: se existe apenas uma existência universal, da qual citta é a expressão limitada, como ela poderia perceber a sua própria existência? Será que citta percebe a sua própria presença em outro citta? Será que existe a possibilidade de um citta sequer perceber a manifestação de outro?

A resposta apresentada por Patañjali é simples: Não há percepção consciente de citta por outro citta, mas apenas a visão de suas projeções (vittis). Citta percebe sua própria presença no mundo na forma de uma vivência, um sentimento inconsciente de sua identidade com o todo. Mas isso só acontece quando aprende a distinguir entre o colorido que expressa a sua própria natureza essencial e aquele que revela as expressões imperfeitas dos pensamentos sobre a matéria.

24. Porém, matizado por inumeráveis pensamentos materiais [vásanás], [citta] pode multiplicar atividades orientado para objetivos que não são seus.

25. Ao procurar pela diferença (individualidade), cessa [para o yoguim] a [percepção da] existência material, porque atman se manifesta.

26. Citta, então, tendendo ao discernimento, gravita em direção ao isolamento espiritual [Kaivalyam].

27. Nas falhas desse procedimento, em decorrência dos hábitos [Samskára], outras convicções ainda se manifestam.

28. É ensinado que a sua destruição se faz como a destruição dos kleças (perturbações). [Ver sutras II, 10 e 11].

29. Para quem age com discernimento e desiste de receber as mais elevadas recompensas por seus méritos, há o Samadhi da Nuvem do Dharma.

Sutra IV, 29 O Samadhi da Nuvem do Dharma é a condição em que o praticante vai além da integração “observadorobjeto” e se integra à totalidade dos objetos ao seu redor. Percebe então sua própria presença espiritual em todos e em cada um deles. Isso é o mesmo que dizer que a sua condição espiritual [dharma] se projeta ao seu redor de maneira difusa e indistinta, como se fosse uma delicada nuvem do dharma.

Nessa condição nada mais resta para ser observado pois tudo se converteu no próprio observador. A percepção de que não há o “outro”, mas apenas o “eu”, produz a sensação do isolamento [Kaivalyam], verdadeiro objetivo da prá- tica do Yoga darçana

30. Daí a introversão [nivitti] das ações ligadas às perturbações.

31. Então, devido à infinitude do conhecimento que foi libertado de todas as impurezas superficiais, tornase pouco o que resta para ser conhecido.

32. Então tendo os guñas alcançado seus objetivos evolutivos, encerra-se a marcha das transformações.

33. Essa marcha já não mais aprisiona, mas liberta o praticante das transformações e da morte, pois integra a totalidade dos momentos [num só momento].

34. O Kaivalya é o estado que se segue ao retorno dos gunas ao seu estado original por estarem esvaziados da presença e do interesse do Purusha, ou se diz que se estabelece em sua natureza autêntica a força [que existe] em cit (o espírito por trás da mente). [O pensamento, ou melhor, as raízes espirituais do pensamento prescindem, nesse estágio final, de qualquer veículo material para se manifestar, pois atuam em sua natureza original – integradas ao pensamento divino].

Sutra IV, 34 Esta frase final encerra os Sutras declarando que as qualidades da matéria [guña] retornam ao seu estado de latência para aquele em quem o modo de pensar de citta se torna um hábito predominante. Não há mais a necessidade de suporte material para a mente, e o indivíduo está plenamente integrado ao todo da natureza manifestada. Isto, em suma, é o Kaivalyam.

Assim se completa o quarto capítulo, chamado “Kaivalya” no tratado sobre Yoga de Çri Patañjali, na doutrina do Samkhya.

Continua…

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