A figura central do Gītā e do Mahābhārata como um todo é o Deus-homem Krishna, considerado uma encarnação humana da Divindade na forma de Vishnu. Em vários aspectos, o grande épico tal como o conhecemos hoje foi criado pela tradição vaishnava 1Como substantivo, essa palavra designa o adorador ou devoto de Vishnu; como adjetivo (caso dessa frase), refere-se à tradição de adoração ou devoção a Vishnu. A palavra correspondente referente a Shiva é “shaiva”. (N.T.) de devoção a Vishnu. É claro que outras tradições religioso-culturais, especialmente o shaivismo (ligado a Shiva), também contribuíram para a versão atual, mas o vaishnavismo parece estar inscrito na própria narrativa épica.
O nome Krishna tem dois significados possíveis. O primeiro é “Negro”, referência à cor escura da sua pele. O outro é “Aquele que atrai”, derivado da raiz verbal krish (“puxar”), e se refere ao efeito que Krishna tem sobre seus devotos.
Será que Krishna foi um personagem histórico ou mera figura mitológica? Quer acreditemos que a figura de Krishna só tenha sido inserida na epopeia numa época posterior (como supõem certos acadêmicos), quer não, não precisamos duvidar de sua historicidade. Há boas provas da existência de Krishna numa época antiga. O Chāndogya-Upanishad (3.17.6), anterior ao Mahābhārata que conhecemos, já menciona Krishna como filho de Devakī. A epopeia e outros textos nos dizem que Devakī era esposa de Vāsudeva, mencionado pela primeira vez como uma divindade no Taittirīya-Āranyaka (10.16), o qual é ainda anterior ao ChāndogyaUpanishad.
A mesma passagem do Upanishad menciona que Krishna foi aluno de Ghora Angirasa e chega até a se referir a um ensinamento específico segundo o qual os seguintes pensamentos devem ser meditados na hora da morte:
És indestrutível (akshita).
És inabalável (acyuta).
És a essência da vida (prāna).
A instrução lembra o Yoga da hora da morte que Krishna ensina no Bhagavad-Gītā (8.11), em que é usado o termo “imperecível” (akshara), derivado da mesma raiz verbal do particípio passado akshita, acima traduzido como “indestrutível”.
Pouco se sabe sobre o mestre de Krishna, embora Sarvepalli Radhakrishnan, ex-presidente da Índia e também um famoso erudito, afirme numa nota de rodapé à sua tradução do Gītā (1948, p. 28, n. 7) que Ghora Angirasa também é chamado Krishna Angirasa no Kaushītaki-Brāhmana (30.9), e que provavelmente compôs o hino 8.74 do Rig-Veda, que canta o elogio do fogo dos sacrifícios.
Na célebre obra Ashtādhyāyī (4.3.98), Pānini, o renomado gramático da língua sânscrita, menciona Vāsudeva (ou seja, Krishna) e Arjuna como objetos de devoção religiosa. Isso dá a entender que ambos devem ter vivido várias gerações antes da época de Pānini, visto que a divinização dos heróis quase nunca acontece da noite para o dia. Arjuna era um dos nomes do deus Indra, e pode ser que Pānini tenha se referido à divindade e não ao guerreiro deificado. Pānini é geralmente situado entre 400 e 300 a.C.
O Mahābhārata claramente identifica Krishna como o governante da tribo Vrishni e da altiva cidade de Dvārakā, que afundou no oceano – provavelmente em razão de um fortíssimo terremoto, fenômeno que não era incomum naquela região do noroeste da Índia. Esse acontecimento é efetivamente mencionado na grande epopeia, e as ruínas de uma cidade, identificada por um dos maiores arqueólogos da Índia como a antiga Dvārakā, foram encontradas ao largo da região tradicionalmente atribuída aos Vrishnis.
Dvārakā deve ser distinguida da atual cidade de Dwarka, na região de Saurashtra, Guzerate. A cidade portuária submersa foi identificada com as estruturas subaquáticas descobertas na ilha Bet Dwarka, também conhecida como Shankhoddhāra ou Shankodhara, onde os búzios (shankha) ainda são abundantemente encontrados.
Localiza-se aproximadamente trinta quilômetros ao norte da atual Dwarka e também era conhecida como Kushasthalī. Na época de Krishna, a ilha ainda era uma península; depois, a ascensão do nível do mar cortou sua ligação com o continente. Sob o comando de Krishna, os cidadãos de Kushasthalī fortificaram a cidade e tornaram-na inexpugnável. Kushasthalī já existia antes de ser ocupada pela tribo de Krishna.
A superpopulação obrigou os Vrishnis a se estabelecerem também no local da atual cidade de Dwarka, num povoado chamado Dvārāvatī. Com o avanço das águas, ambos os locais foram abandonados e permaneceram desocupados durante um milênio.
No Gītā (10.37), Krishna declara: “Sou Vāsudeva entre os Vrishnis.” Em outro trecho (Gītā, 7.19), afirma “Vāsudeva é tudo”, frase que se explica como expressão da realização daqueles sábios que, depois de muitas existências, reconhecem que Krishna é o Senhor Divino.
Vrishni foi um importante rei da dinastia Yadu. Diz-se que era descendente de Vishnu, o que significa que pertencia à tradição vaishnava. Os soberanos dos Yadus (Yādavas) também eram chamados Sātvatas, o que significa que acreditavam em Vishnu/Vāsudeva como Senhor Divino (bhāgavat). Em outras palavras, sua religião era o bhagavatismo, delineado no BhāgavataPurāna.
O Deus-homem Krishna nasceu na dinastia Yadu e parece ter inspirado tanto respeito que foi considerado uma encarnação divina e adorado como tal. Ao mesmo tempo, seus ensinamentos estabeleciam uma relação entre a divindade e o Sol. No Gītā (4.1), Krishna afirma inequivocamente que, na qualidade de Divindade, proclamou esse “Yoga imutável” a Vivasvat (o Sol), que o comunicou a Manu, que por sua vez ensinou-o a Ikshvāku, fundador da Dinastia Solar da Índia (que, ao lado da Dinastia Lunar, era uma das grandes linhagens da Índia antiga).
Forte ligação com o Sol também se estabelece por meio de Ghora Angirasa, mestre de Krishna, que pertencia ao clã dos Bhārgavas. A linhagem dos Bhārgavas fora fundada pelo poderoso vidente Bhrigu, filho do deus criador Brahma.
Certa vez, os videntes se perguntaram quem seria a Divindade Suprema na trindade Brahma-Vishnu-Shiva. Bhrigu foi encarregado de descobrir a verdade. Ele foi até Brahma, que estava sentado em assembleia. Quando Bhrigu, desrespeitosamente, sentou-se numa cadeira, Brahma ficou enfurecido. O vidente saiu sem dizer palavra e dirigiu-se, em seguida, a Shiva. Quando Shiva quis recebê-lo com um abraço, Bhrigu deu um passo para trás e disse: “Não me toque!”.
Shiva estava a ponto de transpassar o sábio com seu tridente quando Pārvatī, sua divina esposa, intercedeu em favor de Bhrigu, salvando-lhe a vida.
Foi em seguida até Vishnu, que estava dormindo. Bhrigu deu um pontapé no peito da divindade. Vishnu acordou abruptamente, mas, quando viu Bhrigu diante de si, pediu-lhe perdão e tocou o pé do vidente. A pegada de Bhrigu ainda está impressa no peito de Vishnu. Ele e os outros grandes videntes dessa época antiga concluíram, a partir do comportamento de Vishnu, que ele era a Divindade Suprema entre as que formavam a grande tríade (trimūrti) e passaram a adorá-lo de forma mais intensa. Não surpreende, pois, que Krishna declare no Gītā (10.25) que “sou Bhrigu entre os grandes videntes”.
O Mahābhārata e especificamente o Gītā (3.32, 9.11, 18.67) deixam claro que nem todos admitiam a divindade de Krishna. O épico e seu episódio também evidenciam, por outro lado, que sua condição de divindade encarnada não tinha nenhuma relação com os delírios de grandeza de um soberano louco ou arrogante. Krishna não era nenhum imperador romano, nenhum faraó egípcio. Pelo menos os textos sagrados hindus o tratam com o maior respeito.
Voltando à história de Vrishni: segundo o Brahmānda-Purāna (3.71.1), o rei Vrishni foi hostil em relação a Krishna porque pensou que Krishna havia roubado a divina joia Syamantaka, dada a Satrājit pelo próprio deus Sūrya (“Sol”). Krishna havia demonstrado interesse em comprar a joia a qualquer preço, o que bastou para despertar as suspeitas de Vrishni. Ouvindo os rumores, Krishna resgatou a joia de uma toca de leões e devolveu-a a Satrājit.
Prasena, irmão de Satrājit, havia emprestado esse tesouro inestimável para usá-lo durante uma caçada e fora morto por um leão. O pai de Vrishni era o rei Madhu, um dos cinco filhos de um rei chamado Kārttavīrya Arjuna.
Muitas informações sobre Krishna são dadas pelo Mahābhārata e por seu apêndice, o Hari-Vamsha, bem como pela extensa literatura purânica, embora a maior parte delas seja necessariamente mais mitológica que histórica. O Hari-Vamsha, que parece ter sido acrescentado ao grande épico por volta de 300 d.C., relata nos mínimos detalhes a história da infância de Krishna e preenche essa flagrante lacuna da história contada pela epopeia.
Embora o épico não apresente quase nada sobre o começo da vida de Krishna, ele descreve seu passado de pastor e o fato de ter sido criado por pais adotivos. Talvez a ausência de detalhes no Mahābhārata tenha levado à criação dos 24 mil versos do HariVamsha, que nesse sentido pode ser visto como o primeiro dos Purānas. Depois, a história da vida de Krishna foi desenvolvida, ou relatada, no Bhāgavata-Purāna, cuja composição é geralmente situada em 900 d.C.
Quando Vasudeva, pai de Krishna e filho do rei Shūrasena de Mathurā, renunciou ao trono e se tornou um humilde pastor de vacas, Ugrasena se tornou rei. Kamsa, filho de Ugrasena e encarnação do antideus ou titã (asura) Kālanemi, aprisionou o pai e apoderou-se do trono. Um adivinho profetizou que ele seria morto pelo oitavo filho de sua irmã Devakī, esposa de Vasudeva, que havia abandonado Mathurā para ser pastor de gado.
Para impedir que Kamsa matasse Devakī, Vasudeva teve de jurar que eles entregariam todos os seus filhos a Kamsa assim que eles nascessem. Kamsa matou seis filhos deles, esmagando-os no chão.
O sétimo filho foi abortado.
O oitavo filho foi Krishna, cuja vida foi salva quando Vishnu transferiu-o magicamente para o útero de Yashodā e transferiu o filho de Yashodā para o ventre de Devakī. Quando Kamsa veio matar aquele que iria ser o recém-nascido de Devakī, a criança escapou-lhe por entre os dedos, elevou-se no ar e informou-lhe de que aquele que haveria de matá-lo já havia nascido em outro lugar.
Em pânico e disposto a assassinar Krishna, Kamsa ordenou que ele fosse procurado pelo país inteiro, mas todos os seus demoníacos embaixadores da morte foram, ao contrário, mortos pelo próprio Krishna. No fim, Krishna destruiu o rei Kamsa.
Mais tarde, Krishna teve de fugir à vingança do rei Jarāsandha, pai das duas esposas de Kamsa, que estavam chorando a morte dele.
Krishna, acompanhado de seu povo, abandonou Mathurā e fundou uma nova cidade – Dvārakā – no Golfo de Kutch. Enquanto os Pāndavas estavam no exílio, ocupou-se de viagens e múltiplos casamentos. Entre suas esposas contavam-se Rukminī, filha do rei Bhīshmaka de Vidarbha; Jāmbavatī, irmã de um nobre dos Yādavas; a asceta Kālindī, que lhe deu dez filhos; sua sobrinha Kaikeyī; Lakshmanā, filha do rei de Madra; três outras mulheres; e, por último, mas não menos importante, as 16 mil inocentes filhas de Naraka, um rei-demônio que depois ele destruiu. Perguntando-se como Krishna conseguia manter satisfeito um tamanho harém, o sábio Nārada (que talvez devesse se ocupar de assuntos mais piedosos) visitou a casa de cada uma das 16.008 esposas e encontrou Krishna morando em cada uma delas.
Quando os príncipes Kauravas se recusaram a devolver o reino a seus primos Pāndavas, Krishna interveio e se tornou um dos participantes mais ativos, de forma visível e invisível, nos preparativos para a guerra. Embora não tenha lutado em campo de batalha contra os Kauravas, Krishna foi um conselheiro, consolador e mago incansável. Criou escuridão para que Arjuna conseguisse matar seu inimigo Jayadratha; tomou conta dos cavalos no campo de batalha; aparou no próprio peito invencível um golpe destinado a Arjuna; impediu Arjuna de suicidar-se e aconselhou os heróis Pāndavas a enfrentar e matar líderes específicos do exército inimigo.
A rainha Gāndharī, esposa de Dhritarāshtra, perdeu todos os seus filhos na guerra e pôs a culpa em Krishna. Amaldiçoou-o, dizendo que em 36 anos também ele testemunharia a morte de seus parentes. E assim aconteceu. Certa vez, quando Krishna estava fazendo uma peregrinação, os Vrishnis, acompanhados por outros membros da dinastia Yadu, embriagaram-se e começaram a brigar entre si. Quando voltou, Krishna ficou tão furioso ao ver tamanho banho de sangue que aniquilou o que restara de seu malfadado clã.
O próprio Krishna foi inadvertidamente morto por uma flecha atirada por um asura chamado Jara (“Velhice”). Coube ao pesaroso Arjuna enterrar seu mestre, o qual, como podemos concluir a partir deste mito, morreu de velho. Depois de abandonar o corpo mortal, Krishna assumiu novamente a forma imortal de Vishnu/Nārāyana.
O arqueólogo S. S. Rao, que explorou a cidade submersa de Dvārakā, disse que Krishna “é a encarnação da glória intelectual e espiritual. Nenhum outro indivíduo ou ideia influenciou tanto a evolução da religião, da filosofia, da arte e da literatura na Índia quanto a personalidade de Krishna” (1999, p. 13).
Segundo a teologia vaishnava, Vishnu não é somente uma Realidade transcendente, mas também uma Pessoa Suprema cheia de amor que tem profunda consideração por sua criação. Sua consideração, ou graça (prasāda), é evidenciada pelo fato de Vishnu projetar-se repetidamente no mundo para restaurar a ordem cósmica e moral (rita ou dharma). Assim, Krishna foi a nona das dez encarnações ou “descidas” (avatāra) divinas. (Sobre o conceito de avatāra, ver Capítulo 4, “As Encarnações Divinas de Vishnu”.) Epítetos de Krishna Usados no Gītā Um epíteto é uma palavra ou expressão descritiva usada em lugar do nome de uma pessoa ou coisa. No Gītā encontram-se os seguintes 21 epítetos de Krishna:
- Acyuta: Firme/Inabalável
- Anantarūpa: [Aquele que Tem] Forma Infinita
- Arisūdana: Matador de Inimigos
- Bhagavat/Bhagavān: Bendito
- Deva: Deus
- Devesha: Senhor dos Deuses
- Govinda: Protetor das Vacas
- Hari: Eliminador [do Sofrimento]; ou Ladrão dos Corações
- Hrishīkesha: [Aquele cujos] pelos [estão] arrepiados [de emoção]; ou Senhor dos Sentidos
- Janārdana: Aquele que Agita o Povo [Pecador]
- Keshava: Cabeludo
- Keshinisūdana: Matador do [Demônio]
- Keshin Mādhava: Relacionado ao [Matador do Demônio]
- Madhu; ou Descendente de Madhu (ver Parte Dois, nota 4 em 1.14)
- Madhusūdana: Destruidor do [Demônio]
- Madhu (ver Parte Dois, nota 4 em 1.14)
- Prabhu: Senhor Purushottama: Pessoa Suprema ou Espírito Supremo
- Vārshneya: Descendente dos Vrishnis
- Vāsudeva: Filho de Vasudeva (ver Parte Dois, nota 58 em 10.37) Vishnu: [Omni] Penetrante
- Yādava: Descendente de Yadu (ver Parte Dois, nota 43 em 11.41)
- Yogeshvara: Senhor do Yoga
Notas de Rodapé
- 1Como substantivo, essa palavra designa o adorador ou devoto de Vishnu; como adjetivo (caso dessa frase), refere-se à tradição de adoração ou devoção a Vishnu. A palavra correspondente referente a Shiva é “shaiva”. (N.T.)