Disse o Senhor Bendito:
7.1 Ouve [agora], ó filho-de-Prithā, de que modo, [com] a mente ligada a Mim, jungido no Yoga, [tendo-]Me como refúgio, virás a conhecer-Me plenamente sem [resquício de] dúvida 1O pleno conhecimento de Deus significa a realização extática da Pessoa Suprema (purushottama), de Deus como Suprapessoa, que se encontra além do fundamentouniversal (brahman) e também do conglomerado de sujeitos transcendentais (purusha) chamado de “elemento vital” (jīva-bhūta) no versículo 7.5. O apego (āsakta) à Divindade não é um apego kármico. Segundo o Gītā, é na verdade o único meio de transcender o cosmo em todos os seus níveis e alcançar a unidade transcendental com a Pessoa Suprema. Sobre “conhecimento-unitivo e conhecimento-distintivo”, ver a N. do T. ao versículo 3.41 (N.T.).
7.2 Declarar-te-ei sem reservas este conhecimento unitivo e distintivo, conhecendo-se o qual nada mais resta a ser conhecido aqui [na Terra].
7.3 Entre milhares de seres humanos, [quase] nenhum se empenha pela perfeição. Mesmo entre os adeptos que se empenham, [quase] nenhum Me conhece verdadeiramente.
7.4 A terra, a água, o fogo, o ar, o éter, a mente, a faculdade-dasabedoria e o sentido-do-ego 2O termo ahamkāra (“criador do eu”) pertence ao vocabulário formal das tradições do Yoga e do Sāmkhya – e aqui talvez seja entendido macrocosmicamente como uma categoria do ser, e não como a sensação microcósmica de individualidade. – é essa a óctupla divisão da Minha natureza (prakriti) [inferior].
7.5 Tal é a [Minha natureza] inferior. Estejas ciente, porém, de que Minha natureza superior é outra: o elemento vital (jīvabhūta) 3O termo jīva-bhūta se refere, no meu entendimento, à coletividade de “mônadas” transcendentais feitas de pura Consciência, a “natureza superior” de Deus. pelo qual este universo é sustentado 4Podemos nos perguntar em que sentido se diz que o “elemento vital” (jīva-bhūta) “sustenta” (dhāryate) o universo. Em seu comentário sobre esse versículo, Swami Tripurari (2001) explica que o “princípio vital”, que ele circunscreve no conceito de jīva-shakti (potência de vida), é “a potência intermediária de Deus”. E continua: “Em sua natureza, é semelhante a Deus e dissemelhante da matéria. Ao mesmo tempo, é dissemelhante de Deus na medida em que é passível de ser iludido pela influência da natureza material.” Mas será possível que uma realidade transcendental como a de jīva-bhūta, superior até ao “criador do eu” e a todas as demais faculdades psicomentais, esteja sujeita à ilusão? Somente os entes individuais (jīva), as personalidades, podem ser iludidos pela matéria. No entanto pode-se dizer que a coletividade transcendente dos Eus Superiores “sustenta” o universo na medida em que a vida (jīva) é o fundamento das miríades de seres ou formas vivas que compõem o cosmo., ó [Arjuna] dos braços fortes.
7.6 Compreende que esta [Minha natureza superior] é o útero de todos os seres. Sou a origem e a dissolução de todo 5Sobre a palavra kritsna, ver a nota 40 em 3.29. este mundo.
7.7 Não há absolutamente nada de superior a Mim, ó Dhanamjaya, 6Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15 Em mim todo este [universo] está enfiado como pérolas num t.
7.8 Eu sou o sabor da água, ó filho-de-Kuntī 7Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27.. Sou o esplendor do Sol e da Lua, o pranava 8O “zumbido” (pranava) é o sagrado monossílabo[ de todos os Vedas, o som do espaço no espaço, a virilidade dos homens 9Para facilitar o entendimento, tratei todos os locativos como genitivos.
7.9 Sou a pura fragrância da terra, o brilho do fogo, a vida de todos os seres e a ascese dos ascetas.
7.10 Conhece-Me [como] a semente eterna de todos os seres, ó filho-de-Prithā 10Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25.. Sou a faculdade-da-sabedoria dos dotados de sabedoria, sou o fulgor dos radiantes.
7.11 E sou o poder dos poderosos, despido de desejo e paixão.
Nos seres, sou o desejo que não se opõe à lei (dharma), ó Bharatarshabha 11Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41.
7.12 Além disso, estejas ciente de que [todos] os estados purose-luminosos (sāttvika), dinâmicos (rājasa) e obscuros (tāmasa) [existentes no mundo] verdadeiramente [procedem] de Mim. No entanto não estou neles; são eles que estão em Mim 12Segundo a ontologia do Yoga e do Sāmkhya, tudo no universo é composto das três qualidades-primárias (guna): sattva, rajas e tamas. O que está além do cosmos é nirguna (“não qualificado”) ou gunātīta (“além das três qualidades-primárias”).
7.13 Este universo inteiro é iludido por esses três estados-deexistência formados pelas qualidades-primárias (guna), [e por isso] não Me reconhece [como] o imutável [que reside] para além deles.
7.14 Pois este [universo inteiro outra coisa não] é [senão] a Minha divina potência-criativa (māyā) 13Sobre o termo māyā, ver a nota 8 em 4.6., composta das qualidades-primárias, difícil de transcender 14A palavra feminina duratyayā (de ati “além” + i “ir”) é usada aqui como qualificativo de māyā.. Os que recorrem unicamente a Mim transcendem essa [Minha] potência-criativa.
7.15 Os malfeitores, os extraviados, os mais vis entre os homens não recorrem a Mim; destituídos de conhecimento pela [Minha] potência-criativa, sujeitam-se à condição dos demônios (āsura).
7.16 Quatro tipos de pessoas que fazem o bem me adoram, ó Arjuna: os aflitos, os que desejam o conhecimento, os que visam ao bem [do mundo] e os gnósticos, ó Bharatarshabha.
7.17 Desses [quatro], o gnóstico sempre jungido [e dotado] de devoção unificada é o mais excelente, pois sou extremamente caro ao gnóstico e ele é caro a Mim.
7.18 Todos estes, em verdade, são exaltados, mas considero o gnóstico como a Mim Mesmo, pois, [com] o eu jungido, ele se encontra estabelecido somente em Mim, o caminho supremo 15O versículo 6.45 nos diz que o “caminho supremo” não é outro senão o próprio Krishna. A palavra gati pode significar “estado” ou “caminho”, “curso”. Preferi essa segunda opção, pois ela dá a entender que o processo de libertação em Deus não é estático, mas dinâmico. Traduzimos o termo mahātma por “grande alma” quando se refere aos sábios ou devotos, mas por “Grande Ser” quando se refere diretamente a Sri Krishna. (N.T.)
7.19 Ao cabo de muitos nascimentos, o homem de conhecimento recorre a Mim. “Vāsudeva é tudo” – assim [conclui] essa grande alma, dificílima de encontrar.
7.20 [Os] destituídos de conhecimento por tais ou quais 16A expressão tais-tair (“estes [ou] aqueles”), que qualifica o substantivo “desejos”, foi traduzida aqui por “tais ou quais”. desejos recorrem a outras divindades, seguindo esta ou aquela regra, obrigados por sua própria natureza 17A expressão prakrityā niyatāh svayā, traduzida aqui por “obrigados por sua própria natureza”, implica uma referência à ideia fundamental de svabhāva
7.21 Qualquer que seja a forma 18O comentador Madhva, da escola dvaita ou dualista, considera altamente significativa, nesse contexto, a escolha da palavra tanu, frequentemente usada para denotar o “corpo”. Correlaciona-a à ideia de que as várias divindades constituem, por assim dizer, o corpo (ou seja, a modalidade inferior) do Ser eterno de Deus. [divina] que um determinado devoto deseje adorar com fé, essa mesma 19A expressão duplicada tasya tasya (“de ele”) é exigida, na gramática, pelo yo yah que a precede. fé firme Eu lhe concedo.
7.22 Jungido por essa fé, procura ele venerar aquela [divindade que adotou] e logo realiza seus desejos, [os quais,] na realidade, [são] atendidos por Mim somente.
7.23 Finito, porém, é o fruto dos parvos de inteligência. Os adoradores das divindades vão para [suas respectivas] divindades. Meus devotos, contudo, vêm a Mim.
7.24 Os insensatos concebem-Me como o não manifesto (avyakta) caído na manifestação. Ignoram Meu estado-de existência (bhāva) superior, imutável e insuperável.
7.25 Velado pela potência-criativa [do Meu] Yoga, não sou luz visível para todos; este universo iludido não conhece a Mim, o Não Nascido, o Imutável.
7.26 Conheço [todos] os seres, os do passado, os do presente e os que ainda serão; mas ninguém, ó Arjuna, conhece [verdadeiramente] a Mim.
7.27 Enfeitiçados pelos pares-de-opostos 20Sobre o termo dvandva (“pares-de-opostos”), ver a nota 19 em 2.15. que nascem do anseio 21Aqui, “anseio” (icchā) significa “apego” (rāga). e da aversão, ó descendente-de-Bharata, todos os seres sucumbem à ilusão da criação, ó Paramtapa 22Sobre o epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, ver a nota 5 em 2.3.
7.28 Porém os homens [que realizam] ações meritórias (punya), para quem acabou-se o mal – eles, libertos da ilusão dos pares-de-opostos e firmes em seus votos, adoram a Mim.
7.29 Os que se empenham por libertar-se da velhice e da morte refugiando–se em Mim [vêm a] conhecer completamente (kritsna) aquele fundamento-universal, a base-do-eu 23Sobre o termo adhyātman, ver a nota 41 em 3.30. e todo [o mistério da] ação.
7.30 Os [yogins] de mente jungida que Me conhecem [como] a base-dos-entes [terrestres], a base-divina e também a base sacrificial, e Me [conhecem] também na hora da partida 24O substantivo composto sânscrito prayāna-kāla, derivado do prefixo pra e da raiz verbal i (“ir”) significa literalmente “ida adiante”, é usado para denotar a ideia de “partida” e se refere à “hora da morte”. O processo da morte é considerado muito importante no Yoga, como será explicado logo mais à frente, no Capítulo 8. – [estes] conhecem [verdadeiramente].
Notas de Rodapé
- 1O pleno conhecimento de Deus significa a realização extática da Pessoa Suprema (purushottama), de Deus como Suprapessoa, que se encontra além do fundamentouniversal (brahman) e também do conglomerado de sujeitos transcendentais (purusha) chamado de “elemento vital” (jīva-bhūta) no versículo 7.5. O apego (āsakta) à Divindade não é um apego kármico. Segundo o Gītā, é na verdade o único meio de transcender o cosmo em todos os seus níveis e alcançar a unidade transcendental com a Pessoa Suprema. Sobre “conhecimento-unitivo e conhecimento-distintivo”, ver a N. do T. ao versículo 3.41 (N.T.).
- 2O termo ahamkāra (“criador do eu”) pertence ao vocabulário formal das tradições do Yoga e do Sāmkhya – e aqui talvez seja entendido macrocosmicamente como uma categoria do ser, e não como a sensação microcósmica de individualidade.
- 3O termo jīva-bhūta se refere, no meu entendimento, à coletividade de “mônadas” transcendentais feitas de pura Consciência, a “natureza superior” de Deus.
- 4Podemos nos perguntar em que sentido se diz que o “elemento vital” (jīva-bhūta) “sustenta” (dhāryate) o universo. Em seu comentário sobre esse versículo, Swami Tripurari (2001) explica que o “princípio vital”, que ele circunscreve no conceito de jīva-shakti (potência de vida), é “a potência intermediária de Deus”. E continua: “Em sua natureza, é semelhante a Deus e dissemelhante da matéria. Ao mesmo tempo, é dissemelhante de Deus na medida em que é passível de ser iludido pela influência da natureza material.” Mas será possível que uma realidade transcendental como a de jīva-bhūta, superior até ao “criador do eu” e a todas as demais faculdades psicomentais, esteja sujeita à ilusão? Somente os entes individuais (jīva), as personalidades, podem ser iludidos pela matéria. No entanto pode-se dizer que a coletividade transcendente dos Eus Superiores “sustenta” o universo na medida em que a vida (jīva) é o fundamento das miríades de seres ou formas vivas que compõem o cosmo.
- 5Sobre a palavra kritsna, ver a nota 40 em 3.29.
- 6Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15
- 7Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27.
- 8O “zumbido” (pranava) é o sagrado monossílabo
- 9Para facilitar o entendimento, tratei todos os locativos como genitivos.
- 10Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25.
- 11Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41.
- 12Segundo a ontologia do Yoga e do Sāmkhya, tudo no universo é composto das três qualidades-primárias (guna): sattva, rajas e tamas. O que está além do cosmos é nirguna (“não qualificado”) ou gunātīta (“além das três qualidades-primárias”).
- 13Sobre o termo māyā, ver a nota 8 em 4.6.
- 14A palavra feminina duratyayā (de ati “além” + i “ir”) é usada aqui como qualificativo de māyā.
- 15O versículo 6.45 nos diz que o “caminho supremo” não é outro senão o próprio Krishna. A palavra gati pode significar “estado” ou “caminho”, “curso”. Preferi essa segunda opção, pois ela dá a entender que o processo de libertação em Deus não é estático, mas dinâmico. Traduzimos o termo mahātma por “grande alma” quando se refere aos sábios ou devotos, mas por “Grande Ser” quando se refere diretamente a Sri Krishna. (N.T.)
- 16A expressão tais-tair (“estes [ou] aqueles”), que qualifica o substantivo “desejos”, foi traduzida aqui por “tais ou quais”.
- 17A expressão prakrityā niyatāh svayā, traduzida aqui por “obrigados por sua própria natureza”, implica uma referência à ideia fundamental de svabhāva
- 18O comentador Madhva, da escola dvaita ou dualista, considera altamente significativa, nesse contexto, a escolha da palavra tanu, frequentemente usada para denotar o “corpo”. Correlaciona-a à ideia de que as várias divindades constituem, por assim dizer, o corpo (ou seja, a modalidade inferior) do Ser eterno de Deus.
- 19A expressão duplicada tasya tasya (“de ele”) é exigida, na gramática, pelo yo yah que a precede.
- 20Sobre o termo dvandva (“pares-de-opostos”), ver a nota 19 em 2.15.
- 21Aqui, “anseio” (icchā) significa “apego” (rāga).
- 22Sobre o epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, ver a nota 5 em 2.3.
- 23Sobre o termo adhyātman, ver a nota 41 em 3.30.
- 24O substantivo composto sânscrito prayāna-kāla, derivado do prefixo pra e da raiz verbal i (“ir”) significa literalmente “ida adiante”, é usado para denotar a ideia de “partida” e se refere à “hora da morte”. O processo da morte é considerado muito importante no Yoga, como será explicado logo mais à frente, no Capítulo 8.