Arjuna disse:
18.1 Quero saber a verdade sobre a renúncia (samnyāsa), ó [Krishna] dos braços fortes, e além [disso], ó Hrishīkesha 1 Sobre o epíteto Hrishīkesha, ver a nota 5 em 1.15., sobre o abandono (tyāga), ó Keshinishūdana. 2O epíteto Keshinishūdana (“Matador de Keshin”) refere-se ao fato de Krishna ter matado o demônio Keshin. Às vezes se usa a ortografia Keshinisūdana.
Disse o Senhor Bendito:
18.2 Lançar fora a ação nascida-do-desejo [é o que] os bardos [videntes] conhecem como renúncia. O abandono do fruto de todas as ações [é o que] os sábios declaram [ser] o abandono.
18.3 “A ação maculada 3O adjetivo “maculada”, em sânscrito, é doshavat. As máculas (dosha) são todas aquelas características da mente que tornam uma ação karmicamente nefasta. As seguintes cinco máculas, ou defeitos, são frequentemente mencionadas em conjunto: a luxúria ou desejo (kāma), a ira (krodha), a cobiça (lobha), o medo (bhaya) e a ilusão ou engano (moha). deve ser abandonada” – assim dizem alguns [homens] sensatos. “Os atos [de] sacrifício, caridade e ascese não devem ser abandonados” – assim [dizem] outros.
18.4 Ouve [agora] a Minha convicção sobre esse abandono, ó Bharatasattama 4Bharatasattama, epíteto que segue o modelo de Kurusattama (4.31), significa “Primeiro dos Bharatas”.. Declara-se que o abandono é tríplice, ó Purushavyāghra. 5Purushavyāghra significa literalmente “homem-tigre”.
18.5 Os atos [de] sacrifício, caridade e ascese não devem ser abandonados; em verdade, devem ser executados. O sacrifício, a caridade e a ascese são purificadores para os sensatos.
18.6 Mas, tendo-se abandonado [todo] o apego e os frutos [das ações], até essas ações devem ser executadas – é essa a Minha convicção (mata) conclusiva e suprema (uttama), ó filho-de-Prithā. 6Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25.
18.7 Pois a renúncia às ações necessárias é inadequada.
Proclama-se que seu abandono, motivado pela ilusão, tem a natureza de tamas.
18.8 Caso [um yogin] abandone a ação por medo da aflição corporal [ou da] dor (duhkha), executando um abandono que tem [somente] a natureza de rajas, ele não alcançará, em verdade, o fruto do [verdadeiro] abandono.
18.9 [Quando] ele cumpre as ações necessárias que verdadeiramente devem ser cumpridas, ó Arjuna, e abandona o apego e o fruto [de suas ações], considera-se que o abandono tem a natureza de sattva.
18.10 O abandonador imbuído de sattva, inteligente [e cujas] dúvidas foram decepadas, não odeia as ações inconformes à-sua-natureza nem é apegado às [ações] conformes-à-sua-natureza. 7Cf. o versículo 2.50, em que a palavra kaushala (“conformes-à-sua-natureza”) tem o sentido de “habilidade”. Hill (1928/1966) traduz esse termo como “condizente” (fitting), enquanto Bhaktivedanta Swami (1983) o entende como “auspicioso”.
18.11 Pois não é possível para aquele que traja o corpo abandonar inteiramente as ações. Antes, [é] aquele que abandona o fruto da ação [que] é denominado um [verdadeiro] “abandonador”.
18.12 Não desejado, desejado e misto 8Essas três categorias correspondem provavelmente aos renascimentos como divindade, demônio e ser humano. – tríplice é o fruto da ação dos não abandonadores que partem. Mas para os renunciadores 9Segundo Shri Shankara, os não abandonadores compreendem também os karmayogins, que ele contrapõe aos verdadeiros jnāna-yogins; mas o contexto dá a entender que, aqui, a palavra samnyāsin significa tyāgin. [não há fruto] absolutamente nenhum.
18.13 Aprende de Mim, ó [Arjuna] dos braços fortes, essas cinco causas proclamadas no sistema do Sāmkhya 10O termo kritānta (krita-anta), traduzido aqui por “sistema”, significa literalmente “fim cumprido” e refere-se à conclusão de algo. Shankara relaciona kritānta ao vedānta, afirmando que o Vedānta, que traz o conhecimento de Si, representa o fim de todos os trabalhos. Abhinavagupta entende kritānta como sinônimo de siddhānta, ou seja, de um sistema filosófico estabelecido. As cinco “causas” estão explicadas na próxima estrofe. para o cumprimento de todas as ações.
18.14 A base [física] 11O termo adhishthāna, traduzido aqui como “base”, é geralmente entendido como o corpo físico. Abhinavagupta é o único a adotar uma opinião diferente; para ele, refere-se aos objetos dos sentidos. e também o agente 12O “agente” (kartri) é o sujeito, o eu empírico ou jivātman, que semeia e colhe o karma bom ou mau., os diversos instrumentos 13A palavra karana (“instrumento”) denota aqui as dez faculdades – ou onze, se incluirmos nesse conjunto a mente inferior (manas). e os vários [e] distintos tipos de atividade; o destino 14O termo daiva (literalmente “divino”) foi traduzido aqui segundo o sentido que costuma ter como substantivo: “destino”. Poderíamos também explicá-lo como “providência divina”. Shankara esclarece que esse termo refere-se de modo mais particular às divindades; assim, o sol (Āditya) favorece os olhos e outras divindades governam os outros órgãos dos sentidos. [é] a quinta.
18.15 Qualquer que seja a ação que o homem empreenda com o corpo, a fala [ou] a mente, adequada ou não – essas cinco são as suas causas.
18.16 Assim sendo, aquele que, em razão de uma sabedoria imperfeita, se vê unicamente como o agente – esse obtuso 15A palavra durmati, traduzida aqui por “obtuso”, significa literalmente “aquele cujo intelecto é fraco”. Sargeant (1984) propõe a divertida tradução “tapado” (blockhead). não vê [a verdade].
18.17 Aquele cujo estado [mental] não é motivado-pelo-ego 16O texto sânscrito traz ahamkrita, que significa literalmente “feito pelo eu”., cuja faculdade-da-sabedoria não está maculada, embora aniquile [todos] estes mundos – ele não aniquila nem é agrilhoado.
18.18 O conhecimento, [aquilo que] deve-ser-conhecido 17O termo jneya, “aquilo que deve-ser-conhecido”, refere-se a qualquer objeto cognoscível. e o conhecedor são o tríplice impulso à ação. O instrumento, a ação e o agente são o tríplice nexo da ação.
18.19 Na enumeração 18O texto sânscrito traz samkhyāna, que os comentadores clássicos correlacionam diretamente com o sistema do Sāmkhya, mas que provavelmente tem, nesse caso, um sentido mais geral. das qualidades-primárias de [acordo com] a distinção entre as qualidades-primárias, declara-se que o conhecimento, a ação e o agente [são] tríplices. Ouve corretamente (yathāvat) também acerca destes.
18.20 [O conhecimento] pelo qual o único [e] imutável estado-de-ser é visto em todos os seres, indiviso no divisível – estejas ciente de que esse conhecimento tem a natureza de sattva.
18.21 Mas [aquele] conhecimento que reconhece, pela separatividade, diversos [e] distintos estados-de-ser em todos os seres – estejas ciente de que esse conhecimento tem a natureza de rajas.
18.22 Além disso, [aquele conhecimento] que se aferra a um único efeito como se [fosse] o todo, sem [a devida] causa, sem interesse pela realidade, e [que é] leviano – é ele descrito como tendo a natureza de tamas.
18.23 A ação necessária que é executada sem apego e sem paixão nem aversão por [um agente que] não anseia pelo fruto [de seus atos] – diz-se ter ela a natureza de sattva.
18.24 Mas a ação executada com violento esforço, ou em razão do sentido–do-ego, por [um agente que] anseia [pela realização de] desejos [egoístas] – diz-se ter ela a natureza de rajas.
18.25 A ação empreendida em razão do engano, sem atentar para a consequência, [seja ela] perda ou dano, nem para a capacidade-humana [de quem a empreende] – diz-se ter ela a natureza de tamas.
18.26 O agente liberto do apego, [que] não [é] um daqueles-quediz-“eu”, [que é] dotado de perseverança e zelo, sempre o mesmo no sucesso e no fracasso – diz-se ter [ele] a natureza de sattva.
18.27 O agente passional, que anseia pelo fruto da ação, cobiçoso, de natureza violenta, impuro [e] sujeito à 19A locução “sujeito a” corresponde ao sânscrito anvita (“dotado de”). euforia [e] à depressão – declara-se ter [ele] a natureza de rajas.
18.28 O agente não jungido, inculto, obstinado, trapaceiro, vil, preguiçoso, desanimado e “defio longo” 20A expressão dīrga-sūtrin, traduzida aqui como “defio longo”, refere-se à pessoa que deixa tudo para depois. – diz-se ter [ele] a natureza de tamas.
18.29 Ouve [agora] sobre a tríplice distinção da faculdade-dasabedoria (buddhi) e também sobre a perseverança [baseada nas] qualidades-primárias, que explicarei distintamente e sem reservas, ó Dhanamjaya. 21Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15.
18.30 A faculdade-da-sabedoria que conhece a atividade e a cessação, o certo e o errado, o medo e o destemor, a escravidão e a libertação – ela tem a natureza de sattva, ó filho-de-Prithā.
18.31 A faculdade-da-sabedoria pela qual se conhece incorretamente a lei (dharma) e a anomia (adharma), bem como o certo e o errado – ela tem a natureza de rajas, ó filho-de-Prithā.
18.32 A faculdade-da-sabedoria que, envolta na escuridão, pensa [que] a anomia é a lei (dharma) e [vê] todas as coisas [assim] invertidas – ela tem a natureza de tamas, ó filho-de-Prithā.
18.33 A perseverança pela qual se “seguram” as atividades da mente, da força vital e dos sentidos por meio de um Yoga inabalável – essa perseverança, ó filho-de-Prithā, tem a natureza de sattva.
18.34 Mas a perseverança, ó Arjuna, pela qual se “seguram” [ou seja, se mantêm as buscas da] lei, [do] prazer [e da] riqueza (artha) com apego [e] anseio pelo fruto [das ações] – essa perseverança, ó filho-de-Prithā, tem a natureza de rajas.
18.35 [A perseverança] pela qual uma [pessoa] obtusa não foge ao sono, ao medo, à tristeza, ao desânimo e à embriaguez – essa perseverança, ó filho-de-Prithā, tem a natureza de tamas.
18.36 Mas ouve agora de Mim, ó Bharatarshabha 22Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41., [sobre] a tríplice felicidade. [Aquela] em que a pessoa se regozija depois de [extensa] prática e [pela qual] se alcança o fim de [todo] sofrimento,
18.37 que no princípio é como veneno [mas que], quando se transforma [no decorrer do tempo, se torna] semelhante ao néctar – proclama-se ter essa felicidade a natureza de sattva, nascida da graça-serenidade (prasāda) da sabedoria (buddhi) do Si Mesmo.
18.38 Aquela que [surge] por meio da união dos sentidos [com seus respectivos] objetos, [que é] semelhante ao néctar no princípio [mas], quando se transforma [no decorrer do tempo, se torna] como veneno – sustenta-se ter essa felicidade a natureza de rajas.
18.39 [Aquela] felicidade que no princípio e no fim ilude o ser, decorrente do sono, da indolência e da desatenção – diz-se ter ela a natureza de tamas.
18.40 Não há entidade (sattva) na terra ou, ainda, entre os deuses do céu que esteja livre dessas três qualidades-primárias nascidas do Cosmo (prakriti).
18.41 As ações dos sacerdotes, dos guerreiros, dos comerciantes e dos servos são distribuídas, ó Paramtapa 23Sobre o epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, ver a nota 5 em 2.3., [de acordo] com as qualidades-primárias que surgem [no] ser-próprio [de cada um deles].
18.42 A tranquilidade, o autocontrole, a ascese, a pureza, a paciência e a retidão, o conhecimento-unitivo e o conhecimento-distintivo, 24Sobre “conhecimento-unitivo e conhecimento-distintivo”, ver a N.T. ao versículo 3.41. (N.T.) a piedade 25O termo sânscrito āstika é derivado da forma verbal asti (“é”) e denota uma atitude de afirmação em relação à revelação védica ou à existência de Deus. Para simplificar, traduzi-o aqui como “piedade”.]– [tal é] a conduta (karman) de um sacerdote, nascida do [seu] ser próprio.
18.43 A coragem, o vigor, a perseverança, a versatilidade e também a aversão-a-fugir em batalha, a generosidade e uma disposição régia – [tal é] a conduta de um guerreiro, nascida do [seu] ser-próprio.
18.44 A agricultura, a pecuária [e] o comércio – [tal é] a conduta de um comerciante, nascida do [seu] ser-próprio. Além disso, a conduta que tem a natureza do serviço nasce do ser-próprio do servo.
18.45 Contentes cada qual em suas próprias ações, os homens atingem a consumação [espiritual]. Ouve [agora] como alcançam o sucesso [por estarem] contentes em suas ações [adequadas].
18.46 [Aquele] de quem [provém] a atividade de [todos os] seres, por quem tudo isso é distribuído – adorando-O por meio das ações próprias [que lhe cabem], o ser humano encontra o sucesso.
18.47 É melhor [cumprir] imperfeitamente a lei-própria que cumprir perfeitamente a lei alheia. 26Essa estrofe reitera a profunda recomendação da estrofe 3.35. Executando a ação exigida por [seu] ser-próprio, [o yogin] não acumula culpa.
18.48 Não se deve abandonar a ação inata 27A palavra sânscrita sahaja, traduzida aqui como “inata”, significa literalmente “conata”. Designa aqui a ação espontânea que surge do ser-próprio (svabhāva) de uma pessoa. mesmo [que ela seja] deficiente, ó filho-de-Kuntī, 28Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27. pois todos os empreendimentos são, por assim dizer, velados por máculas, 29Sobre o termo dosha (“mácula/defeito/falha”), ver a nota 3 em 18.3. [como] o fogo pela fumaça.
18.49 [Aquele cuja] faculdade-da-sabedoria é desapegada em toda parte, que dominou a si mesmo, [cujo] anseio partiu, alcança por meio da renúncia a suprema perfeição da transcendência-da-ação. 30Sobre a “transcendência-da-ação” (naishkarmya), ver a nota 9 em 3.4.
18.50 Aprende de Mim [agora], em breves palavras, como, tendo atingido a perfeição, [o yogin] alcança brahman, que é o modo-de-vida 31O termo nishthā, traduzido aqui como “modo-de-vida”, costuma ser traduzido por “cume”, “culminação”. Mas talvez seu uso nessa estrofe queira dizer que o repouso no fundamento-universal (brahman) não é um estado, mas um processo. Isso faz sentido quando nos lembramos de que, para Krishna, a fusão em brahman não é a consumação espiritual suprema. Ver também 3.3 e 17.1. mais elevado do conhecimento, ó filho-de-Kuntī.
18.51 Jungido pela faculdade-da-sabedoria purificada e controlando a si mesmo com perseverança, abandonando os objetos, [como] o som e assim por diante, e lançando fora o apego (rāga) e a aversão,
18.52 habitando na solidão, tomando uma alimentação leve, controlando a fala, o corpo [e] a mente, sempre atento ao Yoga da meditação, recorrendo à impassibilidade,
18.53 rejeitando o sentido-do-ego, a força, a arrogância, o desejo, a ira [e] a possessividade, pacífico, sem [a ideia de] “meu” – ele está apto a tornar-se o fundamento-universal.
18.54 Transformado em brahman, tranquilo em si mesmo, ele não se entristece nem anseia [por coisa alguma]. [Vendo] o mesmo em todos os seres, adquire a suprema devoção (bhakti) a Mim.
18.55 Por meio da devoção, ele realmente [chega a] conhecer a Mim, quem Eu sou [e] quão grande [sou]. Depois, tendo conhecido realmente a Mim, ele entra imediatamente nesse [Meu ser].
18.56 Além disso, sempre executando todas as ações [e] refugiando-se em Mim, ele alcança por Minha graça a morada eterna, imutável.
18.57 Renunciando no pensamento a todas as ações em Mim, atento a Mim, recorrendo ao buddhi-yoga, deves ter a Mim sempre em [tua] mente.
18.58 Tendo a Mim em [tua] mente, transcenderás todas as dificuldades por Minha graça. Mas se, em razão do sentidodo-ego, não [Me] ouvires, perecerás. 32A ideia aqui expressa é que a pessoa pode trabalhar não só a favor da ordem divina, mas também contra ela. A opção da pessoa dependerá do padrão inato que cristaliza seus muitos nascimentos anteriores. Ver 18.60.
18.59 Recorrendo a esse sentido-do-ego, pensas: “Não lutarei!” [Mas] essa tua decisão [é] vã, [pois] o Cosmo (prakriti) te obrigará [a lutar].
18.60 Aquilo que por ilusão (moha) não queres fazer, isso mesmo farás sem o quereres, agrilhoado [que estás] pela [tua] ação própria nascida do [teu] ser-próprio, ó filho-de-Kuntī.
18.61 O Senhor repousa na região do coração de todos os seres, ó Arjuna, fazendo girar todos [esses] seres por [sua] potência criativa (māyā), [como se estivessem] montados num mecanismo.
18.62 N’Ele somente refugia-te com todo o [teu] ser (bhāva), ó descendente-de-Bharata! Por Sua graça 33Em nenhuma outra parte evidencia-se de modo tão patente o teísmo do Gītā: o devoto que se refugia na Suprema Pessoa está apto a receber a graça de Deus (prasāda). atingirás a suprema paz, a morada eterna.
18.63 Assim, um conhecimento mais secreto que [qualquer outro] segredo te foi declarado por Mim. Refletindo completamente nisso, faz o que desejares.
18.64 Ouve de novo a Minha palavra suprema, de todas a mais secreta. Asseguro-te assim que és amado por Mim. Portanto, dir-te-ei [onde está o teu bem.
18.65 Tem a Mim em [tua] mente, sê-Me devoto, sacrifica a Mim, presta-Me reverência – assim virás a Mim. [Isto] prometo em verdade a ti, [pois] Me és querido.
18.66 Abandonando todos os dharmas, busca abrigo unicamente em Mim. Libertar-te-ei de todos os pecados. Não te entristeças! 34Pregando o abandono completo de todas as normas ou todos os deveres (dharma), abandono esse que se concretiza na renúncia à vida social, Krishna não está se contradizendo. Parityaja, como tyaja, significa sem sombra de dúvida a renúncia na ação, ou seja, não o abandono do agir, mas o abandono do interesse egoísta pelo fruto dos atos. O que se pede é que o devoto se entregue completamente a Deus e ofereça-Lhe toda a sua vontade própria (samkalpa). Aqui é preciso fazer uma interpretação psicológica, não literal.
18.67 Nunca reveles isto a [quem] não [pratique a] ascese, [a quem] não [Me] adore, [a quem] não ouça [Meus ensinamentos], nem [tampouco] a [quem] Me insulte.
18.68 Aquele que instilar em Meus devotos esse supremo segredo, demonstrando a mais elevada devoção por Mim, virá a Mim indubitavelmente.
18.69 E, entre os seres humanos, ninguém prestará um serviço mais caro a Mim do que ele; nem [jamais] haverá na terra outro que Me seja mais caro do que ele.
18.70 E, por meio do sacrifício do conhecimento, serei desejado por aquele que estudar este nosso diálogo lícito (dharmya); esta é a Minha convicção.
18.71 E o homem cheio-de-fé [que] não zomba [de Mim], mesmo que somente ouça [esse ensinamento], será libertado 35Aqui, a “libertação” que se almeja é somente a liberdade em relação ao nível mais material da existência. Hill (1928/1966) comenta com razão: “[libertado], mas não, é claro, dos renascimentos”, pois as ações meritórias pertencem na melhor das hipóteses àqueles que penetraram nos domínios celestiais, que também deverão, no fim, ser transcendidos. [e] alcançará os mundos auspiciosos daqueles [cujas] ações são meritórias.
18.72 [Tudo] isso foi ouvido por ti com a mente unipontual, ó filhode–Prithā? Foi destruída a tua confusão [causada pela] ignorância, ó Dhanamjaya? 36O sânscrito usa muito a voz passiva, que, como se vê nessa estrofe, às vezes fica um pouco canhestra em português. Eu não quis, porém, traduzir esse versículo na voz ativa, para dar aos estudiosos do Gītā um gostinho desse texto sagrado. Arjuna disse:
18.73 [Minha] confusão foi destruída [e] pela tua graça, ó Acyuta, 37Sobre o epíteto Acyuta, ver a nota 16 em 1.21.obtive a recordação. 38Aqui, o termo smriti (“memória”) significa a recordação, por parte de Arjuna, do significado do verdadeiro dharma. O uso da palavra “memória” é significativo, pois a gnose não é um conhecimento novo; é, antes, o reconhecimento (pratyabhijnā) da Verdade eterna e primordial. Em seu comentário, Abhinavagupta perdeu a oportunidade de expor esse ensinamento, do qual gostava tanto. Radhakrishnan (1948) profere os seguintes comentários, muito pertinentes: “A liberdade de bem escolher depende da formação moral. A simples bondade nos eleva a uma liberdade de espírito que nos afasta das baixezas a que a carne é sujeita.” Estou decidido; [toda] incerteza se foi. Farei o que me pedes!
18.74 Assim ouvi este diálogo prodigioso, de arrepiar os pelos, entre o filho-de-Vasudeva 39 Sobre o epíteto filho-de-Vasudeva, ver a nota 58 em 10.37. e o filho-de-Prithā, a grande alma.
18.75 Pela graça de Vyāsa 40Nessa estrofe, Vyāsa menciona mais uma vez a si próprio em seu drama épico. ouvi este segredo excelso, o Yoga comunicado diretamente 41O texto sânscrito diz sākshāt, que significa literalmente “diante dos olhos” e foi traduzido por “diretamente”. pelo próprio Krishna, o Senhor do Yoga.
18.76 Ó rei [Dhritarāshtra]! Recordando e tornando a recordar 42O texto sânscrito diz samsmritya samsmritya (literalmente, “lembrando lembrando”), repetição que procuramos reproduzir em “recordando e tornando a recordar”. este diálogo prodigioso e meritório entre Keshava 43Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31. e Arjuna, repetidamente estremeço-de-alegria.
18.77 E recordando e tornando a recordar aquela forma prodigiosíssima de Hari, 44Hari é um dos nomes de Krishna. é grande o meu espanto, ó rei, e repetidamente estremeço-de-alegria.
18.78 Onde quer que esteja Krishna, o Senhor do Yoga, [e] onde quer que esteja [Arjuna], o filho-de-Prithā, o portador do arco, ali estarão a fortuna, a vitória, o bem e a firme orientação. 45O termo nīti pode significar a orientação pessoal ou política, ou mesmo, como preferem alguns tradutores, a arte de governar. É [esta] a minha convicção.
Notas de Rodapé
- 1Sobre o epíteto Hrishīkesha, ver a nota 5 em 1.15.
- 2O epíteto Keshinishūdana (“Matador de Keshin”) refere-se ao fato de Krishna ter matado o demônio Keshin. Às vezes se usa a ortografia Keshinisūdana.
- 3O adjetivo “maculada”, em sânscrito, é doshavat. As máculas (dosha) são todas aquelas características da mente que tornam uma ação karmicamente nefasta. As seguintes cinco máculas, ou defeitos, são frequentemente mencionadas em conjunto: a luxúria ou desejo (kāma), a ira (krodha), a cobiça (lobha), o medo (bhaya) e a ilusão ou engano (moha).
- 4Bharatasattama, epíteto que segue o modelo de Kurusattama (4.31), significa “Primeiro dos Bharatas”.
- 5Purushavyāghra significa literalmente “homem-tigre”.
- 6Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25.
- 7Cf. o versículo 2.50, em que a palavra kaushala (“conformes-à-sua-natureza”) tem o sentido de “habilidade”. Hill (1928/1966) traduz esse termo como “condizente” (fitting), enquanto Bhaktivedanta Swami (1983) o entende como “auspicioso”.
- 8Essas três categorias correspondem provavelmente aos renascimentos como divindade, demônio e ser humano.
- 9Segundo Shri Shankara, os não abandonadores compreendem também os karmayogins, que ele contrapõe aos verdadeiros jnāna-yogins; mas o contexto dá a entender que, aqui, a palavra samnyāsin significa tyāgin.
- 10O termo kritānta (krita-anta), traduzido aqui por “sistema”, significa literalmente “fim cumprido” e refere-se à conclusão de algo. Shankara relaciona kritānta ao vedānta, afirmando que o Vedānta, que traz o conhecimento de Si, representa o fim de todos os trabalhos. Abhinavagupta entende kritānta como sinônimo de siddhānta, ou seja, de um sistema filosófico estabelecido. As cinco “causas” estão explicadas na próxima estrofe.
- 11O termo adhishthāna, traduzido aqui como “base”, é geralmente entendido como o corpo físico. Abhinavagupta é o único a adotar uma opinião diferente; para ele, refere-se aos objetos dos sentidos.
- 12O “agente” (kartri) é o sujeito, o eu empírico ou jivātman, que semeia e colhe o karma bom ou mau.
- 13A palavra karana (“instrumento”) denota aqui as dez faculdades – ou onze, se incluirmos nesse conjunto a mente inferior (manas).
- 14O termo daiva (literalmente “divino”) foi traduzido aqui segundo o sentido que costuma ter como substantivo: “destino”. Poderíamos também explicá-lo como “providência divina”. Shankara esclarece que esse termo refere-se de modo mais particular às divindades; assim, o sol (Āditya) favorece os olhos e outras divindades governam os outros órgãos dos sentidos.
- 15A palavra durmati, traduzida aqui por “obtuso”, significa literalmente “aquele cujo intelecto é fraco”. Sargeant (1984) propõe a divertida tradução “tapado” (blockhead).
- 16O texto sânscrito traz ahamkrita, que significa literalmente “feito pelo eu”.
- 17O termo jneya, “aquilo que deve-ser-conhecido”, refere-se a qualquer objeto cognoscível.
- 18O texto sânscrito traz samkhyāna, que os comentadores clássicos correlacionam diretamente com o sistema do Sāmkhya, mas que provavelmente tem, nesse caso, um sentido mais geral.
- 19A locução “sujeito a” corresponde ao sânscrito anvita (“dotado de”).
- 20A expressão dīrga-sūtrin, traduzida aqui como “defio longo”, refere-se à pessoa que deixa tudo para depois.
- 21Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15.
- 22Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41.
- 23Sobre o epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, ver a nota 5 em 2.3.
- 24Sobre “conhecimento-unitivo e conhecimento-distintivo”, ver a N.T. ao versículo 3.41. (N.T.)
- 25O termo sânscrito āstika é derivado da forma verbal asti (“é”) e denota uma atitude de afirmação em relação à revelação védica ou à existência de Deus. Para simplificar, traduzi-o aqui como “piedade”.
- 26Essa estrofe reitera a profunda recomendação da estrofe 3.35.
- 27A palavra sânscrita sahaja, traduzida aqui como “inata”, significa literalmente “conata”. Designa aqui a ação espontânea que surge do ser-próprio (svabhāva) de uma pessoa.
- 28Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27.
- 29Sobre o termo dosha (“mácula/defeito/falha”), ver a nota 3 em 18.3.
- 30Sobre a “transcendência-da-ação” (naishkarmya), ver a nota 9 em 3.4.
- 31O termo nishthā, traduzido aqui como “modo-de-vida”, costuma ser traduzido por “cume”, “culminação”. Mas talvez seu uso nessa estrofe queira dizer que o repouso no fundamento-universal (brahman) não é um estado, mas um processo. Isso faz sentido quando nos lembramos de que, para Krishna, a fusão em brahman não é a consumação espiritual suprema. Ver também 3.3 e 17.1.
- 32A ideia aqui expressa é que a pessoa pode trabalhar não só a favor da ordem divina, mas também contra ela. A opção da pessoa dependerá do padrão inato que cristaliza seus muitos nascimentos anteriores. Ver 18.60.
- 33Em nenhuma outra parte evidencia-se de modo tão patente o teísmo do Gītā: o devoto que se refugia na Suprema Pessoa está apto a receber a graça de Deus (prasāda).
- 34Pregando o abandono completo de todas as normas ou todos os deveres (dharma), abandono esse que se concretiza na renúncia à vida social, Krishna não está se contradizendo. Parityaja, como tyaja, significa sem sombra de dúvida a renúncia na ação, ou seja, não o abandono do agir, mas o abandono do interesse egoísta pelo fruto dos atos. O que se pede é que o devoto se entregue completamente a Deus e ofereça-Lhe toda a sua vontade própria (samkalpa). Aqui é preciso fazer uma interpretação psicológica, não literal.
- 35Aqui, a “libertação” que se almeja é somente a liberdade em relação ao nível mais material da existência. Hill (1928/1966) comenta com razão: “[libertado], mas não, é claro, dos renascimentos”, pois as ações meritórias pertencem na melhor das hipóteses àqueles que penetraram nos domínios celestiais, que também deverão, no fim, ser transcendidos.
- 36O sânscrito usa muito a voz passiva, que, como se vê nessa estrofe, às vezes fica um pouco canhestra em português. Eu não quis, porém, traduzir esse versículo na voz ativa, para dar aos estudiosos do Gītā um gostinho desse texto sagrado.
- 37Sobre o epíteto Acyuta, ver a nota 16 em 1.21.
- 38Aqui, o termo smriti (“memória”) significa a recordação, por parte de Arjuna, do significado do verdadeiro dharma. O uso da palavra “memória” é significativo, pois a gnose não é um conhecimento novo; é, antes, o reconhecimento (pratyabhijnā) da Verdade eterna e primordial. Em seu comentário, Abhinavagupta perdeu a oportunidade de expor esse ensinamento, do qual gostava tanto. Radhakrishnan (1948) profere os seguintes comentários, muito pertinentes: “A liberdade de bem escolher depende da formação moral. A simples bondade nos eleva a uma liberdade de espírito que nos afasta das baixezas a que a carne é sujeita.”
- 39Sobre o epíteto filho-de-Vasudeva, ver a nota 58 em 10.37.
- 40Nessa estrofe, Vyāsa menciona mais uma vez a si próprio em seu drama épico.
- 41O texto sânscrito diz sākshāt, que significa literalmente “diante dos olhos” e foi traduzido por “diretamente”.
- 42O texto sânscrito diz samsmritya samsmritya (literalmente, “lembrando lembrando”), repetição que procuramos reproduzir em “recordando e tornando a recordar”.
- 43Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31.
- 44Hari é um dos nomes de Krishna.
- 45O termo nīti pode significar a orientação pessoal ou política, ou mesmo, como preferem alguns tradutores, a arte de governar.