Arjuna disse:
13.0 O Cosmo (prakriti) e o Espírito (purusha), o “campo” e o “conhecedor do campo”, o conhecimento e aquilo-que-deve-ser-conhecido (jneya): disso, ó Keshava 1Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31., desejo ter ciência 2Esse versículo não consta em alguns manuscritos (por isso está numerado como 13.0). “Aquilo que deve ser conhecido” (jneya) significa a multidão dos objetos de conhecimento.
Disse o Senhor Bendito:
13.1 Este corpo [e esta mente], ó filho-de-Kuntī 3Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27., é chamado de “campo”; aquele que conhece este [corpo e mente] é chamado “conhecedor do campo” por [aqueles que] o conhecem 4Essa estrofe fornece o sentido esotérico de kshetra, que também lança nova luz sobre o primeiro versículo de todo o Gītā. Deus é o conhecedor do campo de todas as individualidades simultaneamente. Cada mônada individual é a conhecedora do campo do organismo psicossomático com o qual é associada. Por implicação, Deus também “conhece” os vários Eus que compõem o jīva-bhūta do seu Ser total..
13.2 E [deves] conhecer-Me também como “conhecedor do campo” em todos os “campos”, ó descendente-de-Bharata. O conhecimento do “campo” e do “conhecedor do campo” – este Eu tenho na conta de [verdadeiro] conhecimento.
13.3 O que é esse “campo”, como [ele] é, quais são [as suas] modificações e de onde [ele vem], bem como quem ele [ou seja, o “conhecedor do campo”] é e qual é o [seu] poder – ouve [agora], de Mim, [tudo] isso em breves palavras.
13.4 [Essas coisas foram] cantadas pelos videntes de diversas e distintas maneiras em vários hinos, bem como em expressões aforísticas sobre o fundamento-universal (brahman) 5Os comentadores tradicionais entendem essa passagem como uma referência ao Brahma-Sūtra atribuído a Bādarāyana. A maioria dos estudiosos contemporâneos acha isso pouquíssimo provável e especula que os aforismos sobre brahman aqui mencionados são outra obra, mais antiga que aquela., conclusivas e sustentadas por raciocínios válidos.
13.5 Os grandes elementos 6Os “grandes elementos” (mahābhūta) são a terra, a água, o fogo, o ar e o éter ou espaço. Eles compõem todas as coisas materiais, incluindo o corpo., o sentido-do-ego, a faculdade-da-sabedoria e o não manifesto 7O “não manifesto” (avyakta) é a dimensão indiferenciada da existência, que é puramente potencial., os onze sentidos 8Sobre os onze sentidos ou faculdades, ver a nota 13 em 3.6 e a nota 15 em 3.7. [incluindo a mente inferior] e as cinco “pastagens de vacas” 9As “pastagens de vacas” (gokara) compreendem toda a extensão dos objetos sensoriais que se apresentam aos sentidos, ou seja, as faculdades (indriya) ou órgãos de cognição e ação. dos sentidos,
13.6 o desejo (icchā), a aversão, o prazer, a dor, a confusão 10No texto em sânscrito usa-se o termo samghāta, que tem, em geral, o sentido de “agregação”, “compressão”, “densidade”. Sargeant (1984) propõe a curiosa tradução “todo orgânico” (referindo-se ao corpo físico), que praticamente não faz sentido nesse contexto, uma vez que o corpo já foi mencionado mediante referência aos “grandes elementos”. Hill (1928/1966) observa com razão que “o aparecimento desta palavra – saṃghāta – entre as modificações da mente não é fácil de explicar”. Rejeitando as traduções anteriores, ele opta por traduzi-la por “associação”, mas admite que mesmo essa solução é obscura. Baseando-me na conotação “densidade”, creio que “confusão” seja um sentido igualmente provável., a consciência e a “retenção” 11O termo dhriti nesse catálogo das modificações mentais foi traduzido de vários modos – “constância” (Hill 1928/1966), “convicção” (Bhaktivedanta Swami 1983), “firmeza” (Nataraja Guru 1973) e “perseverança” (Edgerton 1944; Radhakrishnan 1948; Sargeant 1984). Pelo fato de a memória ser uma faculdade mental importantíssima, meu palpite, baseado em meus conhecimentos, é que a palavra dhriti é usada aqui no sentido de “retenção”. – tudo isso, em suma, é descrito como o “campo” com [suas] modificações.
13.7 A ausência-de-orgulho, a ausência-de-pretensão, a não violência, a paciência, a retidão, a reverência pelo preceptor, a pureza, a estabilidade, o autodomínio,
13.8 a indiferença pelos objetos dos sentidos e, com efeito, a ausência-de-sentido-do-ego (anahamkāra), a intuição 12O termo darshana significa “visão/olhar” e já foi traduzido por “percepção” e “ter em vista”, mas, nesse contexto, “intuição” (insight) me parece a tradução preferível. dos defeitos do nascimento, da morte, da velhice, da doença e do sofrimento,
13.9 o desapego, a ausência-de-emaranhamento com o filho, a esposa, o lar e outras coisas semelhantes, uma equanimidade constante 13O texto em sânscrito traz sama-cittatva. Sobre a noção de sama, ver a nota 20 em 2.15. nos acontecimentos desejáveis [e] indesejáveis,
13.10 e a inabalável devoção a Mim por nenhum outro [meio senão o] Yoga 14Sobre a palavra ananya no contexto do Yoga, ver também a nota 4 em 12.6., o estabelecimento em local solitário e o desgosto pela companhia das pessoas,
13.11 a constância no conhecimento da base-do-eu 15Sobre adhyātman (“base-do-eu”), ver a nota 41 em 3.30. e a intuição 16Ver a nota 12 em 13.8. do objetivo do conhecimento da Realidade – [tudo] isso se proclama [ser o verdadeiro] conhecimento. A ignorância é o contrário disso.
13.12 Declararei [agora] aquilo-que-deve-ser-conhecido, conhecendo o qual [o yogin] alcança a imortalidade. O fundamento-universal 17Sobre brahman, traduzido aqui como “fundamento-universal”, ver a nota 66 em 2.72., supremo e sem princípio, não é chamado nem de ser nem de não ser.
13.13 Esse [fundamento-universal] está presente (tishtati) no mundo, [com] mãos e pés em toda parte, olhos, cabeças e bocas em toda parte, ouvidos em toda parte, envolvendo todas as coisas.
13.14 [Embora] pareça [possuir] todas as qualidades sensoriais, [ele] é despido de todos os sentidos 18 Compare com 11.37, onde se afirma que Krishna é tanto sat (“ser”) quanto asat (“não ser”) e, no entanto, permanece além de ambos. (Em outros contextos, como p. e. xem 13.21, sat e asat são traduzidos por “bom” e “mau”.) Ver também o ShvetāshvataraUpanishad 4.18 e o Rig-Veda 10.129.. Não se apega [a nada], mas a tudo sustenta. [Está] além das qualidades primárias 19Sobre as qualidades-primárias (guna), ver a nota 44 em 2.45. e [no entanto] é aquele que frui das qualidades-primárias.
13.15 [Esse fundamento-universal] está fora e dentro de [todos os] seres, imóvel mas móvel 20Normalmente, a palavra carācara não tem esse sentido metafísico, mas refere-se às coisas móveis e imóveis. Compare com o que se diz em 13.26, onde as palavras sthāvara (“imóvel”) e jangama (“móvel”) são usadas para denotar a mesma coisa.. Em razão de sua sutileza, não pode ser conhecido. Situa-se ao longe e [no entanto está] perto.
13.16 E, indiviso, habita aparentemente dividido nos seres. Este [brahman] deve ser conhecido como o sustentador dos seres, [seu] devorador e [seu] gerador (prabhavishnu).
13.17 Esse [fundamento-universal] também é chamado de Luz das luzes, além da escuridão. [É] o conhecimento [e] aquilo-que-deve-ser-conhecido 21O termo jneya (“aquilo que deve ser conhecido”) se refere aos objetos de cognição.; [é] acessível ao conhecimento, sediado no coração de todos [os seres].
13.18 Assim se explicam em breves palavras [não só] o “campo” [como] também o conhecimento [e] aquilo-que-deve-ser conhecido. Sabendo disso, Meu devoto se aproxima do Meu estado-de-ser.
13.19 Estejas ciente de que tanto o Cosmo (prakriti) quanto o Espírito (purusha) [são] sem-princípio, e estejas ciente também de que as modificações e as qualidades-primárias nascem do Cosmo. 22Essa palavra, aqui, não se refere ao Cosmo manifesto, mas à Matriz do Cosmo, o fundamento substancial não manifesto de toda a existência, de onde o Espírito, em sua perene atividade formativa, extrai a substância dos seres manifestados, os quais se distinguem por suas qualidades. (N.T.).
13.20 O Cosmo é chamado de causa (hetu) em [relação à] atividade [dos] instrumentos [e] efeitos [cósmicos]. O Espírito é chamado de causa em [relação à] qualidade de fruir do prazer e da dor.
13.21 O Espírito, repousando no Cosmo, frui das qualidades primárias (guna) nascidas do Cosmo. O apego às qualidades-primárias é a causa de seu nascimento em úteros bons (sat) e maus (asat).
13.22 O Espírito supremo neste corpo é chamado de supervisor e permitidor, sustentador, fruidor, grande senhor e também supremo Si Mesmo.
13.23 Quem assim conhece o Espírito e o Cosmo juntamente com as qualidades-primárias – ele não nascerá de novo, seja qual for o seu modo de existência.
13.24 Alguns por Si Mesmos percebem o Si Mesmo em Si Mesmos por meio da meditação; outros, por meio do Sāmkhya Yoga; e outros [ainda] por meio do Yoga da ação (karma-yoga).
13.25 Mas outros, que o ignoram, ouvindo [falar] disso, [o] adoram.
Também eles transcendem a morte, [por terem sido] dedicados ao que ouviram.
13.26 Qualquer entidade (sattva) nascida, móvel ou imóvel – estejas ciente de que ela [nasceu] da união do “campo” com o “conhecedor do campo”, ó Bharatarshabha. 23 Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41.
13.27 Aquele que vê o Senhor Supremo igualmente presente em todos os seres [e sabe que ele] não perece quando [eles] perecem – este [realmente] vê; ele vê [verdadeiramente].
13.28 Pois, vendo o Senhor repousando igualmente em toda parte, ele não pode ferir a si mesmo por si mesmo e, logo, trilha o caminho mais excelso.
13.29 E aquele que vê que as ações são executadas unicamente pelo Cosmo [e que] o Si Mesmo é, portanto, não agente – ele vê [verdadeiramente].
13.30 Quando percebe [que] os diversos estados-de-existência de [todos os] seres repousam no Um [e quando compreende que sua] distribuição procede disso – ele alcança o fundamento-universal.
13.31 Pelo fato de esse imutável Si Mesmo supremo ser sem princípio e [estar] além das qualidades-primárias, embora habite no corpo [e na mente, ele] nem age nem se macula, ó filho-de-Kuntī.
13.32 Assim com o onipresente éter, em razão de [sua] sutileza, não se polui, assim também o Si Mesmo, [embora] habite em toda parte nos corpos, não é maculado.
13.33 Assim como o Sol ilumina sozinho todo este mundo, assim também o “possuidor do campo” (kshetrin) ilumina o “campo”, ó descendente-de-Bharata.
13.34 Aqueles que, com o olho do conhecimento, conhecem desse modo a diferença [entre] o “campo” e o “conhecedor do campo” e [também o caminho da] libertação [em relação ao] Cosmo dos elementos (bhūta) 24Edgerton (1944) entende a expressão bhūtaprakritimokshan como “libertação em relação à natureza material dos seres”. Por “Cosmo dos elementos”, refiro-me à existência cósmica composta dos cinco elementos materiais (bhūta).– estes dirigem-se ao Supremo.
Notas de Rodapé
- 1Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31.
- 2Esse versículo não consta em alguns manuscritos (por isso está numerado como 13.0). “Aquilo que deve ser conhecido” (jneya) significa a multidão dos objetos de conhecimento.
- 3Sobre o epíteto filho-de-Kuntī (Kaunteya), ver a nota 19 em 1.27.
- 4Essa estrofe fornece o sentido esotérico de kshetra, que também lança nova luz sobre o primeiro versículo de todo o Gītā. Deus é o conhecedor do campo de todas as individualidades simultaneamente. Cada mônada individual é a conhecedora do campo do organismo psicossomático com o qual é associada. Por implicação, Deus também “conhece” os vários Eus que compõem o jīva-bhūta do seu Ser total.
- 5Os comentadores tradicionais entendem essa passagem como uma referência ao Brahma-Sūtra atribuído a Bādarāyana. A maioria dos estudiosos contemporâneos acha isso pouquíssimo provável e especula que os aforismos sobre brahman aqui mencionados são outra obra, mais antiga que aquela.
- 6Os “grandes elementos” (mahābhūta) são a terra, a água, o fogo, o ar e o éter ou espaço. Eles compõem todas as coisas materiais, incluindo o corpo.
- 7O “não manifesto” (avyakta) é a dimensão indiferenciada da existência, que é puramente potencial.
- 8Sobre os onze sentidos ou faculdades, ver a nota 13 em 3.6 e a nota 15 em 3.7.
- 9As “pastagens de vacas” (gokara) compreendem toda a extensão dos objetos sensoriais que se apresentam aos sentidos, ou seja, as faculdades (indriya) ou órgãos de cognição e ação.
- 10No texto em sânscrito usa-se o termo samghāta, que tem, em geral, o sentido de “agregação”, “compressão”, “densidade”. Sargeant (1984) propõe a curiosa tradução “todo orgânico” (referindo-se ao corpo físico), que praticamente não faz sentido nesse contexto, uma vez que o corpo já foi mencionado mediante referência aos “grandes elementos”. Hill (1928/1966) observa com razão que “o aparecimento desta palavra – saṃghāta – entre as modificações da mente não é fácil de explicar”. Rejeitando as traduções anteriores, ele opta por traduzi-la por “associação”, mas admite que mesmo essa solução é obscura. Baseando-me na conotação “densidade”, creio que “confusão” seja um sentido igualmente provável.
- 11O termo dhriti nesse catálogo das modificações mentais foi traduzido de vários modos – “constância” (Hill 1928/1966), “convicção” (Bhaktivedanta Swami 1983), “firmeza” (Nataraja Guru 1973) e “perseverança” (Edgerton 1944; Radhakrishnan 1948; Sargeant 1984). Pelo fato de a memória ser uma faculdade mental importantíssima, meu palpite, baseado em meus conhecimentos, é que a palavra dhriti é usada aqui no sentido de “retenção”.
- 12O termo darshana significa “visão/olhar” e já foi traduzido por “percepção” e “ter em vista”, mas, nesse contexto, “intuição” (insight) me parece a tradução preferível.
- 13O texto em sânscrito traz sama-cittatva. Sobre a noção de sama, ver a nota 20 em 2.15.
- 14Sobre a palavra ananya no contexto do Yoga, ver também a nota 4 em 12.6.
- 15Sobre adhyātman (“base-do-eu”), ver a nota 41 em 3.30.
- 16Ver a nota 12 em 13.8.
- 17Sobre brahman, traduzido aqui como “fundamento-universal”, ver a nota 66 em 2.72.
- 18Compare com 11.37, onde se afirma que Krishna é tanto sat (“ser”) quanto asat (“não ser”) e, no entanto, permanece além de ambos. (Em outros contextos, como p. e. xem 13.21, sat e asat são traduzidos por “bom” e “mau”.) Ver também o ShvetāshvataraUpanishad 4.18 e o Rig-Veda 10.129.
- 19Sobre as qualidades-primárias (guna), ver a nota 44 em 2.45.
- 20Normalmente, a palavra carācara não tem esse sentido metafísico, mas refere-se às coisas móveis e imóveis. Compare com o que se diz em 13.26, onde as palavras sthāvara (“imóvel”) e jangama (“móvel”) são usadas para denotar a mesma coisa.
- 21O termo jneya (“aquilo que deve ser conhecido”) se refere aos objetos de cognição.
- 22Essa palavra, aqui, não se refere ao Cosmo manifesto, mas à Matriz do Cosmo, o fundamento substancial não manifesto de toda a existência, de onde o Espírito, em sua perene atividade formativa, extrai a substância dos seres manifestados, os quais se distinguem por suas qualidades. (N.T.).
- 23Sobre o epíteto Bharatarshabha, ver a nota 48 em 3.41.
- 24Edgerton (1944) entende a expressão bhūtaprakritimokshan como “libertação em relação à natureza material dos seres”. Por “Cosmo dos elementos”, refiro-me à existência cósmica composta dos cinco elementos materiais (bhūta).