Arjuna disse:
11.1 Como um favor a mim, pronunciaste esse discurso [sobre] o supremo mistério chamado “base-do-eu” 1Sobre o termo adhyātman, ver a nota 41 em 3.30., por meio do qual esta minha confusão se dissipou. 2O primeiro verso dessa estrofe tem uma sílaba a mais. É fácil retificá-lo, substituindo paramam por param.
11.2 Pois ouvi detalhadamente de Ti sobre o surgimento e a dissolução dos seres, ó [Krishna] dos olhos de lótus, bem como sobre a [Tua] glória imutável.
11.3 Assim como descreveste a Ti Mesmo, Senhor Supremo, assim também desejo ver Tua forma senhorial, ó Supremo Espírito. 3O epíteto Purushottama, aplicado a Krishna, é composto de purusha (“pessoa”) e uttama (“suprema, inigualada”). É comumente traduzido por Suprema Pessoa ou, nesse caso, Supremo Espírito.
11.4 Se consideras possível, Senhor, que eu veja essa [forma Tua], revela-me [Teu] Si Mesmo imutável, ó Senhor do Yoga.
Disse o Senhor Bendito:
11.5 Ó filho-de-Prithā, 4Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25. contempla Minhas formas cêntuplas, milíplices, de variados tipos, divinas, multicoloridas e multiformes.
11.6 Contempla os Ādityas 5Sobre os Ādityas, ver a nota 15 em 10.21., os Vasus 6Sobre os Vasus, ver a nota 24 em 10.23., os Rudras 7Os onze Rudras (“Uivadores”), como os Maruts, habitam o espaço intermediário (antariksha), que é externamente a atmosfera e internamente o espaço mental. Simbolizam a força vital (prāna). Ver também a nota 21 em 10.23. e os Ashvins 8Os Ashvins são dois gêmeos divinos de cabeça de cavalo, os deuses padroeiros da cura e da agricultura na religião védica. São os precursores da aurora e costumam ser representados sentados numa carruagem dourada puxada por aves ou cavalos., como também os Maruts 9Sobre os Maruts, ver a nota 16 em 10.21.. Contempla, ó descendente-de-Bharata, muitas maravilhas nunca antes vistas.
11.7 Contempla agora, ó Gudākesha 10Sobre o epíteto Gudākesha, ver a nota 17 em 1.24., o universo inteiro, [com todas as coisas] móveis e imóveis, repousando como uma unidade no Meu corpo; e [contempla] tudo o mais que desejares ver.
11.8 Não obstante, não poderás ver-Me com este teu olho [físico].
Dar-te-ei o olho divino. Contempla meu Yoga senhorial.
Samjaya disse [ao rei Dhritarāshtra]:
11.9 Tendo dito isso, ó rei, Hari, o grande Senhor do Yoga, revelou [Sua] suprema forma senhorial ao filho-de-Prithā.
11.10 [Sua forma tem] muitas bocas e muitos olhos, muitas aparências (darshana) maravilhosas, muitos adornos divinos, muitas divinas armas levantadas,
11.11 traja divinas roupas e guirlandas, é ungida de divinas fragrâncias, todo-maravilhosa. [Contempla] Deus, infinito [e] onipresente.
11.12 Se o esplendor de mil sóis surgisse de uma só vez no céu (div), seria semelhante ao esplendor daquele Grande Ser. 11Esse versículo e o versículo 11.32 ganharam fama no Ocidente graças ao físico norte-americano J. Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atômica”, que estudou o Gītā em sânscrito quando jovem. Ele relatou que, ao ver a nuvem em forma de cogumelo quando do primeiro teste de uma arma nuclear, em 16 de julho de 1945, lembrou-se do verso “se o clarão de mil sóis explodisse de uma só vez no céu, seria semelhante ao esplendor do Poderoso” (11.10 na tradução de Swami Nikhilananda, 1944). Lembrou-se também do versículo 11.32, que naquela tradução dizia: “Agora me tornei a Morte, destruidora dos mundos.”
11.13 Então, o filho-de-Pāndu viu todo o multíplice universo repousando na Unidade, no corpo do Deus dos deuses.
11.14 Foi quando Dhanamjaya 12Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15., cheio de espanto, de cabelos em pé, curvando a cabeça diante de Deus e saudando-o com o anjali 13Anjali é o gesto em que as palmas das mãos se unem e as duas mãos tocam a testa. Implica uma saudação respeitosa., disse:
Arjuna disse:
11.15 Ó Deus, em Teu corpo contemplo as divindades e todas as espécies de seres, o Senhor Brahma sentado no trono de lótus 14Segundo Shankara, o trono de lótus (kamala-āsana) de Brahma é o Monte Meru, o eixo do universo. e todos os videntes e as divinas serpentes. 15Esse e todos os versículos até o versículo 11.50 inclusive estão na cadência trishtubh.
11.16 Em toda parte contemplo a Ti, de forma infinita, [com] muitos braços, ventres, bocas [e] olhos. Não vejo em Ti nenhum fim, nenhum meio, nem tampouco nenhum início, ó Senhor Universal, Omniforma! 16A expressão “Omniforma” (vishva-rupā) refere-se ao aspecto cósmico ou universal de Krishna.
11.17 Contemplo-Te [com] o diadema, a maça e o disco – uma massa luminosa rodeada de chamas. [Não obstante, és] difícil de ver completamente, [pois és] uma imensurável irradiação resplandecente de fogo solar.
11.18 Deves ser conhecido como o supremo Imperecível. És o supremo receptáculo de tudo isso. És o Imutável, o Guardião da lei eterna. És o Espírito perene. [Essa] é a minha convicção.
11.19 Sem princípio, [sem] meio, [sem] fim, de vitalidade infinita, [com] infinitos braços [e tendo] por olhos a Lua e o Sol:
contemplo-Te – [Tuas] boca[s] flamejante[s] devoram [todas as coisas como se fossem] oblações, consumindo tudo isso com Teu próprio fulgor.
11.20 Por Ti somente este [espaço] 17O espaço entre o céu (dos deuses) e a terra é chamado antarīksha (“[aquilo que é] visto no meio”), a “região intermediária”. entre o céu e a terra é penetrado, e [também] todas as quatro direções. Vendo esta Tua forma prodigiosa 18A forma cósmica de Krishna parece prodigiosa a Arjuna porque dentro dela todas as coisas são vistas simultaneamente (coincidentia oppositorum). Ao mesmo tempo, essa visão cósmica é terrível, sem dúvida porque a Divindade também inclui em seu âmbito tudo o que amedronta os comuns mortais, especialmente a realidade do sofrimento e da morte [visto que todos os seres manifestos serão, cedo ou tarde, reabsorvidos na Realidade principial não manifesta – N.T.]. O encontro de Arjuna com Deus se expressa, assim, como um mysterium tremendum et fascinosum (expressão em latim cunhada pelo teólogo Rudolf Otto, que qualifica a experiência do sagrado como um “mistério assustador e fascinante”)., terrível, o tríplice mundo estremece, ó Grande Ser.
11.21 Lá longe, estes exércitos de divindades entram em Ti.
Algumas, aterrorizadas, saúdam[-Te] com o anjali. Bradando “Salve!”, a multidão dos grandes videntes e dos perfeitos enaltece a Ti com abundantes hinos de louvor.
11.22 Rudras, Ādityas, Vasus e Sādhyas 19Os Sādhyas, habitantes dos céus, são divindades ligadas ao Sol. Como sua designação sugere, são meios de realização para os que aspiram a alcançar o espírito solar., os Vishve[-devas] 20Os dez ou treze Vishvedevas (“Deuses do Todo”) são divindades associadas a princípios primariamente psicológicos, como a verdade (satya), a vontade (kratu), a agradabilidade (rocaka), a paciência (dhriti) e por aí afora., os [dois] Ashvins, os Maruts e os bebedores de vapor 21 Os “bebedores de vapor” (ushma-pa) são os espíritos dos antepassados (pitri), que se alimentariam do vapor que sobe das oferendas de alimentos. Fazer oferendas diárias a esses espíritos dos mortos é uma obrigação importante para os hindus piedosos., bem como os exércitos dos Gandharvas 22Sobre os Gandharvas, ver a nota 33 em 10.26., dos Yakshas 23Sobre os Yakshas, ver a nota 22 em 10.23., dos Asuras 24Os Asuras são os antideuses ou titãs. Ver a nota 47 em 10.30. e dos perfeitos – todos [eles], estarrecidos, Te contemplam.
11.23 Contemplando [essa] grande forma Tua, [com suas] muitas bocas e muitos olhos, ó [Krishna] dos braços fortes, [seus] muitos braços, suas coxas, seus pés, [seus] muitos abdomes, [suas] muitas presas formidáveis – estremecem os mundos e também eu estremeço.
11.24 Tocando o firmamento-do-mundo 25Rāmānuja dá uma explicação detalhada do termo nabhas, traduzido aqui por “firmamento-do-mundo”: equipara-o ao “espaço” transcendental do Ser Supremo, além do fundamento-universal. Isso é duvidoso, porém, pois a visão cósmica de Arjuna é necessariamente relacionada ao Cosmo. A Realidade transcendente não tem forma e está “além das três qualidades-primárias” (trigunātīta), sendo, portanto, totalmente despida de quaisquer atributos (nirguna). [Por outro lado, o texto não diz que a forma divina de Krishna “é” nabhas, mas sim que “toca” ou “tangencia” essa realidade, o que é aceitável. (N.T.)], chamejando em muitas cores, [com] bocas abertas e imensos olhos flamejantes – contemplando-Te [assim, meu] eu mais íntimo 26O termo antarātman, traduzido aqui por “eu mais íntimo”, refere-se ao aspecto mais profundo da personalidade humana. Não é equivalente ao Si Mesmo transcendente, como quer Zaehner (1966). Para Shankara e Rāmānuja, está claro que significa a mente. Provavelmente é um sinônimo de buddhi (ver nota 24 em 6.47). trepida e não encontro nem fortaleza nem tranquilidade, ó Vishnu.
11.25 E vendo Tuas [muitas] bocas [crivadas de] formidáveis presas semelhantes ao fogo [do fim] dos tempos, não sei para onde me voltar 27O texto sânscrito diz disho na jāne, literalmente “não conheço as quatro direções [do espaço]”. e não encontro abrigo. Concede[me] Tua graça, ó Senhor dos deuses, ó Morada do universo!
11.26 E todos estes filhos-de-Dhritarāshtra, juntamente com os exércitos dos protetores da Terra – Bhīshma, Drona, bem como o filho do cocheiro [ou seja, Karna] e nossos principais guerreiros –,
11.27 entram velozmente em Tuas bocas dotadas de presas formidáveis, que instilam o medo. Alguns são vistos com as cabeças pulverizadas aparecendo em meio aos [Teus] dentes.
«Mortos por várias espécies de homens, eles entram em Tua[s] boca[s] de inconcebível forma – todos os guerreiros seguidores de Yudhishthira e os seguidores de Dhritarāshtra são abatidos por diversas armas e inapelavelmente aniquilados por Teu esplendor: assim, estes [homens] entram agora no Teu corpo.» 28Esse versículo adicional não se encontra na cadência trishtubh como todo o restante dessa passagem, o que indica tratar-se de uma interpolação.
11.28 Assim como muitos rios e torrentes de água despejam-se diretamente no oceano, assim também esses heróis do mundo dos homens entram em Tuas bocas flamejantes.
11.29 Assim como as mariposas, em encorpadas fileiras, caem numa chama de fogo e são destruídas, assim também os mundos, em encorpadas fileiras, entram em Tuas bocas e são destruídos.
11.30 Com bocas flamejantes, consomes e devoras por inteiro todos os mundos. Preenchendo o universo todo com [Teu] clarão, Teus raios terríveis [a tudo] abrasam, ó Vishnu.
11.31 Diz-me quem és, ó Tu de forma terrível. Saudações a Ti! Ó Melhor dos deuses, tem piedade! Quero conhecer-Te [como eras] no princípio, pois não compreendo Tua [divina] criatividade.
Disse o Senhor Bendito:
11.32 Sou o tempo, poderoso autor da destruição do mundo, dedicado aqui a aniquilar os mundos. De todos estes guerreiros enfileirados nos exércitos antagônicos, Tu somente estarás [vivo após esta batalha].
11.33 Portanto levanta-te [e] conquista a glória! Subjugando os inimigos, goza de um próspero reinado! Em verdade, [todos] eles já foram mortos por Mim. Sê [Meu] mero instrumento, ó Savyasācin! 29O epíteto Savyasācin (“hábil com a esquerda”) refere-se à excepcional habilidade com que Arjuna, ambidestro, manejava o arco.
11.34 Drona 30Drona (“Tina”), mencionado nos primeiros capítulos do Gītā, tinha sido instrutor militar tanto dos Kauravas quanto dos Pāndavas, mas optou por lutar ao lado dos primeiros.[417], Bhīshma 31 Sobre Bhīshma, ver a Parte Um, capítulo 3, “Os Personagens do Gītā”, e a nota 14 em 1.17., Jayadratha Jayadratha, rei de Sindhu, lutou ao lado dos Kauravas. Havia se comportado de maneira ignominiosa para com Draupadī, a esposa comum dos cinco irmãos Pāndavas. 32Jayadratha, rei de Sindhu, lutou ao lado dos Kauravas. Havia se comportado de maneira ignominiosa para com Draupadī, a esposa comum dos cinco irmãos Pāndavas. e Karna 33Karna (“Orelha”), formidável guerreiro dos Kauravas, era meio-irmão de Arjuna., bem como [todos] os demais guerreiros heróis, [já] estão mortos por Mim. Deves abatê[-los]! Não hesites. Luta! Vencerás [teus] rivais na batalha.
Samjaya disse:
11.35 Ouvindo essas palavras de Keshava 34Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31., Kirītin 35O epíteto Kirītin significa “[Aquele que Usa um] Diadema”, ou seja, aquele que foi coroado como príncipe dos Pāndavas., saudando-o com o anjali, trepidando, saudando-o novamente e curvando-se, assustado ao extremo, disse a Krishna com [voz] vacilante:
Arjuna disse:
11.36 Com razão, ó Hrishīkesha 36Sobre o epíteto Hrishīkesha, ver a nota 5 em 1.15., o universo se regozija e é arrebatado pelo Teu louvor. Os Rākshasas 37Sobre os Rākshasas, ver a nota 23 em 10.23. fogem aterrorizados em [todas as] direções e todos os exércitos dos perfeitos [Te] saúdam.
11.37 E por que não [Te] saudariam, ó Grande Ser, [pois que és] ainda maior que Brahma, o criador primordial? Ó Infinito Senhor dos deuses, ó Morada do universo, és o Imperecível, o ser e o não ser e o que está além disso.
11.38 És o Deus Primordial, o Espírito (purusha) antigo. És o supremo receptáculo de tudo isto. És o conhecedor, o conhecido e a morada suprema. Por Ti tudo isto é distribuído, ó forma infinita!
11.39 És Vāyu 38Vāyu é o Deus do Vento., Yama 39Yama é o Deus da Morte., Agni 40Agni é o Deus do Fogo, a principal divindade da era védica., Varuna 41Varuna é o Deus das Águas. Ver a nota 43 em 10.29., a Lua e Prajāpati 42Prajāpati, o “Senhor das Criaturas”, é o primeiríssimo criador, superior até ao deus criador Brahma., o bisavô paterno. Saudações, mil vezes saudações a Ti; e mais uma vez, e mais uma, saudações, saudações a Ti!
11.40 Saudações a Ti pela frente e por trás! Saudações a Ti de todos os lados, ó Tudo! Tens vitalidade infinita [e] poder imensurável. Completas tudo, logo és tudo.
11.41 Se [eu], ignorante da Tua majestade, por inadvertência ou talvez por afeto, pensando temerariamente [que és meu] amigo, disse [sem a devida reverência] “Olá, Krishna! Olá, Yādava! 43O epíteto Yādava significa “Descendente de Yadu”. Yadu foi um grande rei da dinastia solar a que Krishna pertencia. No nível humano, Krishna era um rei da dinastia Yadu. Sua linhagem vinha do deus Brahma e passava por Atri, Candra, Budha, Purūravas, Āyus, Nahusha, Yayāti e Kuru. Olá, amigo!”, 44As estrofes 11.41-44 estão na cadência trishtubh.
11.42 e se, zombando, [demonstrei] desrespeito para Contigo [quando estávamos] divertindo[-nos], repousando, sentados ou comendo, [quer] sozinhos, quer na presença [de outrem] – [por tudo] isso Te peço perdão, ó Acyuta 45Sobre o epíteto Acyuta, ver a nota 16 em 1.21., [Tu que és] insondável!
11.43 És o pai do mundo, [com todas as coisas] móveis e imóveis.
És o digno de adoração e o venerabilíssimo mestre. Ninguém é igual a Ti – como [poderia haver] algo maior no tríplice mundo, ó poder inigualável?
11.44 Portanto, curvando e inclinando-humildemente o corpo, peço Tua indulgência, ó Senhor digno de louvor. Deves suportar[me], ó Deus, como o pai ao filho, o amigo ao amigo e o amante ao amado.
«Os videntes de outrora recordam Teus antigos atos divinos e prodigiosos. Não há outro criador do universo. És o único originador providente, onipotente e vindo-a-ser [ou seja, o universo em seu desdobramento].
Com efeito, que prodígio seria impossível para Ti? Ou que outro [prodígio] poderia eu enaltecer [que] fosse impossível [para Ti]? Visto que Tu Mesmo és o criador de tudo, ó Onipotente, és em verdade tudo isso.
Nenhum ato, [por] prodigioso [que seja], é difícil para Ti; Teus feitos não têm igual. Tuas qualidades não têm medida, nem tampouco [Teu] fulgor, [Tua] força, [Tua] prosperidade. » 46Esse trecho extra é encontrado em alguns manuscritos usados por Belvalkar e só é apresentado aqui para que o leitor tenha uma noção do tipo de elaboração possível para qualquer texto sânscrito tradicional.
11.45 Emociono-me por ter visto [o que] jamais fora visto antes, mas minha mente está afligida pelo medo. [Portanto,] ó Deus, mostra-me de novo aquela [Tua] forma [humana].
Concede[-me] Tua graça, ó Senhor dos deuses, ó Morada do universo! 47Essa estrofe e a seguinte estão na cadência trishtubh.
11.46 Quero ver-Te como [eras antes], [com Tua] coroa, [portando] nas mãos a maça e o disco. Assume [de novo] aquela forma de quatro braços, ó Omniforma de mil braços! Disse o Senhor Bendito:
11.47 Por Minha bondade para contigo, ó Arjuna, revelei[-te] esta forma suprema mediante [Meu] próprio Yoga – esta [forma] Minha fulgurante, total, infinita e primordial, que antes não fora vista por ninguém [a não ser] tu. 48As estrofes 11.47-50 estão na cadência trishtubh.
11.48 Nem pelos Vedas, nem pelos sacrifícios, nem pelo estudo, nem pela caridade, nem pelos ritos, nem por rigorosas asceses posso ser visto nesta forma no mundo dos homens por ninguém [a não ser] tu, ó Kurupravīra! 49O epíteto Kurupravīra significa “Herói dos Kurus”.
11.49 Tu não [deves] tremer. Não [sucumbas] à perplexidade ao ver esta horripilante forma Minha. Liberto de [todo] o medo, com a mente em júbilo, contempla de novo esta Minha forma [física familiar], a mesma [que conheces tão bem].
Samjaya disse:
11.50 Tendo assim falado a Arjuna, Vāsudeva 50Sobre o epíteto Vāsudeva, ver a nota 58 em 10.37.[437] revelou novamente [Sua] própria forma [humana]; e, assumindo de novo [Seu] agradável corpo [humano], o Grande Ser confortou o aterrorizado [Arjuna].
Arjuna disse:
11.51 Contemplando [de novo] essa Tua agradável forma humana, ó Janārdana 51Sobre o epíteto Janārdana, ver a nota 25 em 1.36., recupero agora [um estado em que minha] consciência volta [à sua] natureza [normal]. 52Nessa estrofe retoma-se a cadência shloka.
Disse o Senhor Bendito:
11.52 Essa forma Minha, que viste, é muito difícil de ver. As próprias divindades sempre anseiam por um vislumbre dessa forma.
11.53 No aspecto em que Me viste, não posso ser visto nem por [meio dos] Vedas, nem pela ascese, nem pela caridade, nem pelos sacrifícios.
11.54 Mas pela devoção [dirigida] a nenhum outro, ó Arjuna, posso ser conhecido nesse aspecto; [posso] ser visto e, em verdade, penetrado, ó Paramtapa. 53 Sobre o epíteto Paramtapa, ver a nota 5 em 2.3.
11.55 Aquele que cumpre Minha obra, [tendo-]Me [como intenção] suprema; [aquele que é] Meu devoto, abandonou [todo] o apego [e é] livre da inimizade para com todos os seres – ele vem a Mim, ó filho-de-Pāndu.
Notas de Rodapé
- 1Sobre o termo adhyātman, ver a nota 41 em 3.30.
- 2O primeiro verso dessa estrofe tem uma sílaba a mais. É fácil retificá-lo, substituindo paramam por param.
- 3O epíteto Purushottama, aplicado a Krishna, é composto de purusha (“pessoa”) e uttama (“suprema, inigualada”). É comumente traduzido por Suprema Pessoa ou, nesse caso, Supremo Espírito.
- 4Sobre o epíteto filho-de-Prithā (Pārtha), ver a nota 18 em 1.25.
- 5Sobre os Ādityas, ver a nota 15 em 10.21.
- 6Sobre os Vasus, ver a nota 24 em 10.23.
- 7Os onze Rudras (“Uivadores”), como os Maruts, habitam o espaço intermediário (antariksha), que é externamente a atmosfera e internamente o espaço mental. Simbolizam a força vital (prāna). Ver também a nota 21 em 10.23.
- 8Os Ashvins são dois gêmeos divinos de cabeça de cavalo, os deuses padroeiros da cura e da agricultura na religião védica. São os precursores da aurora e costumam ser representados sentados numa carruagem dourada puxada por aves ou cavalos.
- 9Sobre os Maruts, ver a nota 16 em 10.21.
- 10Sobre o epíteto Gudākesha, ver a nota 17 em 1.24.
- 11Esse versículo e o versículo 11.32 ganharam fama no Ocidente graças ao físico norte-americano J. Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atômica”, que estudou o Gītā em sânscrito quando jovem. Ele relatou que, ao ver a nuvem em forma de cogumelo quando do primeiro teste de uma arma nuclear, em 16 de julho de 1945, lembrou-se do verso “se o clarão de mil sóis explodisse de uma só vez no céu, seria semelhante ao esplendor do Poderoso” (11.10 na tradução de Swami Nikhilananda, 1944). Lembrou-se também do versículo 11.32, que naquela tradução dizia: “Agora me tornei a Morte, destruidora dos mundos.”
- 12Sobre o epíteto Dhanamjaya, ver a nota 7 em 1.15.
- 13Anjali é o gesto em que as palmas das mãos se unem e as duas mãos tocam a testa. Implica uma saudação respeitosa.
- 14Segundo Shankara, o trono de lótus (kamala-āsana) de Brahma é o Monte Meru, o eixo do universo.
- 15Esse e todos os versículos até o versículo 11.50 inclusive estão na cadência trishtubh.
- 16A expressão “Omniforma” (vishva-rupā) refere-se ao aspecto cósmico ou universal de Krishna.
- 17O espaço entre o céu (dos deuses) e a terra é chamado antarīksha (“[aquilo que é] visto no meio”), a “região intermediária”.
- 18A forma cósmica de Krishna parece prodigiosa a Arjuna porque dentro dela todas as coisas são vistas simultaneamente (coincidentia oppositorum). Ao mesmo tempo, essa visão cósmica é terrível, sem dúvida porque a Divindade também inclui em seu âmbito tudo o que amedronta os comuns mortais, especialmente a realidade do sofrimento e da morte [visto que todos os seres manifestos serão, cedo ou tarde, reabsorvidos na Realidade principial não manifesta – N.T.]. O encontro de Arjuna com Deus se expressa, assim, como um mysterium tremendum et fascinosum (expressão em latim cunhada pelo teólogo Rudolf Otto, que qualifica a experiência do sagrado como um “mistério assustador e fascinante”).
- 19Os Sādhyas, habitantes dos céus, são divindades ligadas ao Sol. Como sua designação sugere, são meios de realização para os que aspiram a alcançar o espírito solar.
- 20Os dez ou treze Vishvedevas (“Deuses do Todo”) são divindades associadas a princípios primariamente psicológicos, como a verdade (satya), a vontade (kratu), a agradabilidade (rocaka), a paciência (dhriti) e por aí afora.
- 21Os “bebedores de vapor” (ushma-pa) são os espíritos dos antepassados (pitri), que se alimentariam do vapor que sobe das oferendas de alimentos. Fazer oferendas diárias a esses espíritos dos mortos é uma obrigação importante para os hindus piedosos.
- 22Sobre os Gandharvas, ver a nota 33 em 10.26.
- 23Sobre os Yakshas, ver a nota 22 em 10.23.
- 24Os Asuras são os antideuses ou titãs. Ver a nota 47 em 10.30.
- 25Rāmānuja dá uma explicação detalhada do termo nabhas, traduzido aqui por “firmamento-do-mundo”: equipara-o ao “espaço” transcendental do Ser Supremo, além do fundamento-universal. Isso é duvidoso, porém, pois a visão cósmica de Arjuna é necessariamente relacionada ao Cosmo. A Realidade transcendente não tem forma e está “além das três qualidades-primárias” (trigunātīta), sendo, portanto, totalmente despida de quaisquer atributos (nirguna). [Por outro lado, o texto não diz que a forma divina de Krishna “é” nabhas, mas sim que “toca” ou “tangencia” essa realidade, o que é aceitável. (N.T.)]
- 26O termo antarātman, traduzido aqui por “eu mais íntimo”, refere-se ao aspecto mais profundo da personalidade humana. Não é equivalente ao Si Mesmo transcendente, como quer Zaehner (1966). Para Shankara e Rāmānuja, está claro que significa a mente. Provavelmente é um sinônimo de buddhi (ver nota 24 em 6.47).
- 27O texto sânscrito diz disho na jāne, literalmente “não conheço as quatro direções [do espaço]”.
- 28Esse versículo adicional não se encontra na cadência trishtubh como todo o restante dessa passagem, o que indica tratar-se de uma interpolação.
- 29O epíteto Savyasācin (“hábil com a esquerda”) refere-se à excepcional habilidade com que Arjuna, ambidestro, manejava o arco.
- 30Drona (“Tina”), mencionado nos primeiros capítulos do Gītā, tinha sido instrutor militar tanto dos Kauravas quanto dos Pāndavas, mas optou por lutar ao lado dos primeiros.
- 31Sobre Bhīshma, ver a Parte Um, capítulo 3, “Os Personagens do Gītā”, e a nota 14 em 1.17.
- 32Jayadratha, rei de Sindhu, lutou ao lado dos Kauravas. Havia se comportado de maneira ignominiosa para com Draupadī, a esposa comum dos cinco irmãos Pāndavas.
- 33Karna (“Orelha”), formidável guerreiro dos Kauravas, era meio-irmão de Arjuna.
- 34Sobre o epíteto Keshava, ver a nota 21 em 1.31.
- 35O epíteto Kirītin significa “[Aquele que Usa um] Diadema”, ou seja, aquele que foi coroado como príncipe dos Pāndavas.
- 36Sobre o epíteto Hrishīkesha, ver a nota 5 em 1.15.
- 37Sobre os Rākshasas, ver a nota 23 em 10.23.
- 38Vāyu é o Deus do Vento.
- 39Yama é o Deus da Morte.
- 40Agni é o Deus do Fogo, a principal divindade da era védica.
- 41Varuna é o Deus das Águas. Ver a nota 43 em 10.29.
- 42Prajāpati, o “Senhor das Criaturas”, é o primeiríssimo criador, superior até ao deus criador Brahma.
- 43O epíteto Yādava significa “Descendente de Yadu”. Yadu foi um grande rei da dinastia solar a que Krishna pertencia. No nível humano, Krishna era um rei da dinastia Yadu. Sua linhagem vinha do deus Brahma e passava por Atri, Candra, Budha, Purūravas, Āyus, Nahusha, Yayāti e Kuru.
- 44As estrofes 11.41-44 estão na cadência trishtubh.
- 45Sobre o epíteto Acyuta, ver a nota 16 em 1.21.
- 46Esse trecho extra é encontrado em alguns manuscritos usados por Belvalkar e só é apresentado aqui para que o leitor tenha uma noção do tipo de elaboração possível para qualquer texto sânscrito tradicional.
- 47Essa estrofe e a seguinte estão na cadência trishtubh.
- 48As estrofes 11.47-50 estão na cadência trishtubh.
- 49O epíteto Kurupravīra significa “Herói dos Kurus”.
- 50Sobre o epíteto Vāsudeva, ver a nota 58 em 10.37.
- 51Sobre o epíteto Janārdana, ver a nota 25 em 1.36.
- 52Nessa estrofe retoma-se a cadência shloka.
- 53Sobre o epíteto Paramtapa, ver a nota 5 em 2.3.