O Yoga do Desalento de Arjuna
[O rei cego] Dhritarāshtra disse:
1.1 No campo do dharma, o campo dos Kurus, meus [homens] e os [cinco] filhos-de-Pāndu estavam reunidos, ansiosos para lutar. Que fizeram eles, Samjaya?
Samjaya [ministro do rei cego] disse:
1.2 Vendo as tropas dos filhos-de-Pāndu alinhadas, o príncipe Duryodhana [dos Kauravas] abordou seu preceptor [Drona] e falou estas palavras:
1.3 Preceptor, contempla este vasto exército dos filhos-de-Pāndu, posto em formação pelo filho de Drupada [Drishtadyumna], teu sábio discípulo.
1.4 Aqui se encontram heróis, grandes arqueiros, iguais em batalha (yudha) a Bhīma e Arjuna – Yuyudhāna, Virāta e Drupada, o grande guerreiro-de-carruagens;
1.5 Dhrishtaketu, Cekitāna e o valente rei dos Kāshis, Purujit, Kuntibhoja e Shaibya, um touro entre os homens;
1.6 o corajoso Yudhāmanyu e o valente Uttamaujas, o filho de Subhadrā [chamado Abhimanyu] e os [cinco] filhos-de-Draupadī, todos eles grandes guerreiros de-carruagens.1Aqui, a expressão mahā-rathāh (lit. “grandes carruagens”) não se refere à carruagem em si, mas ao hábil senhor da carruagem (ratha-īsha), que não é o cocheiro (rathin). Arjuna, por exemplo, era o senhor da carruagem, e Krishna, que não lutou propriamente na guerra dos Bharatas, serviu como seu cocheiro. Os guerreiros – todos eles heróis – mencionados nos versículos seguintes têm suas próprias histórias e são discutidos no curso a distância sobre o Bhagavad-Gītā ministrado pela Traditional Yoga Studies, www.traditionalyogastudies.com.
1.7 Fica ciente também, ó melhor dos nascidos duas vezes,2 A expressão “nascidos duas vezes” (dvija) – de dvi (“duas vezes”) e ja (“nascido”) – refere-se às castas superiores da hierarquia tradicional de classes da Índia: os brāhmanas (elite sacerdotal), os kshatriyas (classe militar) e os vaishyas (comerciantes, artesãos e camponeses). Considera-se que todos os membros dessas castas “nascem” uma segunda vez por meio do processo formal de investidura com o cordão sagrado. A casta dos shūdras (servos) não tem esse privilégio.N daqueles que são [os mais] excelentes entre nós, os líderes do meu exército. Designo-os para ti por [seus] nomes próprios.
1.8 Tu mesmo, Bhīshma, Karna e Kripa, vitorioso no combate, Ashvatthāman, Vikarna e também o filho-de-Somadatta,
1.9 e muitos outros heróis [dispostos a] entregar a vida por mim. Várias são suas armas de ataque e todos são hábeis em batalha.
1.10 Ilimitadas são estas nossas forças comandadas por Bhīshma, mas aquelas forças deles, comandadas por Bhīma, [parecem] limitadas.3A versão aceita desse versículo é problemática, pois dá a entender que o imenso exército dos Kauravas, comandado por Bhīshma, é menor (mais “limitado”) que o dos Pāndavas, comandado por Bhīma. De acordo com outros trechos do épico, isso não é verdade. Optei, portanto, por uma versão alternativa disponível, já conhecida por Bhāskara, comentador posterior a Shankara (século IX): aparyāpta tad asmākam balam bhīmaabhirakshitam / paryāptam tv idam eteshām balam bhīshma-abhirakshitam. Esta interpretação também foi aceita por Abhinavagupta, grande erudito e mestre da Caxemira
1.11 [Dirigindo-se a todos os guerreiros, o príncipe Duryodhana continuou:]
Posicionados em todas as manobras como [lhes foi] assinalado, que em verdade cada um de vós guarde Bhīshma!
1.12 [Samjaya disse:] Para lhe [a Duryodhana] dar alegria, o idoso patriarca dos Kurus [Bhīshma] soprou vigorosamente em seu búzio, levando ao alto [um som semelhante a] um rugido de leão.
1.13 Então, de repente, soaram búzios, tímpanos, pratos, trombetas e tambores; o alvoroço foi tumultuoso.
1.14 Em seguida, em pé em sua grande carruagem atrelada a corcéis brancos, Mādhava 4A expressão “nascidos duas vezes” (dvija) – de dvi (“duas vezes”) e ja (“nascido”) – refere-se às castas superiores da hierarquia tradicional de classes da Índia: os brāhmanas (elite sacerdotal), os kshatriyas (classe militar) e os vaishyas (comerciantes, artesãos e camponeses). Considera-se que todos os membros dessas castas “nascem” uma segunda vez por meio do processo formal de investidura com o cordão sagrado. A casta dos shūdras (servos) não tem esse privilégio. [Krishna] e o filho-de-Pāndu [Arjuna] também sopraram seus divinos búzios.
1.15 Hrishīkesha 5Alguns comentadores antigos derivam o nome Hrishīkesha de hrishīka-īsha ou “senhor dos sentidos”, mas essa etimologia é mais esotérica que literal. O sentido literal é “[aquele cujos] pelos (kesha) estão arrepiados [de excitação ou êxtase]”, ou seja, “pelos arrepiados”. [Krishna] soprou Pāncajanya,6A importância dos búzios se verifica pelo fato de eles receberem nomes individuais. Pāncajanya significa literalmente “relativo a Pancajana”. Depois de matar o demônio Pancajana, que morava dentro de um búzio, Krishna tomou o búzio para si. Dhanamjaya 7Esse epíteto de Arjuna significa literalmente “conquistador de riquezas” (dhanamjaya) e se refere aos bens materiais ou espirituais conquistados.; Devadatta; o autorde-feitos-formidáveis [Bhīma], de barriga de lobo [ 8A expressão “de barriga de lobo” refere-se ao apetite gigantesco do musculoso Bhīma, soprou o grande búzio Paundra 9Paundra, o búzio de Bhīma, deriva seu nome daquele de uma tribo que lutou ao lado dos Pāndavas.
1.16 [O búzio] Anantavijaya 10Ananta-vijaya significa “vitória infinita”. Pode-se ver aí uma referência oculta ao dharma, o qual é sempre vitorioso e é a própria essência de Yudhishthira, que, como já foi dito, foi gerado pelo deus Dharma. (Ver Parte Um, Capítulo 3, “Os Personagens do Gītā”.) [foi soprado pelo] filho-de-Kuntī, Yudhishthira, o rei [de direito]; Nakula e Sahadeva [sopraram] Sughosha 11Sughosha é derivado das palavras que significam “bom” (su) e “som” e pode ser traduzido como “de bom som” ou, de modo mais poético, “melodioso”. e Manipushpaka. 12Mani-pushpaka significa “florido de pedras preciosas”.
1.17 E o rei-dos-Kāshis, supremo arqueiro, e Shikhandin13Shikhandin realizou a façanha de matar o invencível Bhīshma, pois este se recusava a lutar contra uma mulher. Em sua vida imediatamente anterior, Shikhandin tinha sido Ambā, uma filha do senhor de Kāshi (a atual Varanasi). Naquela existência, ela deveria ter se casado com Bhīshma, mas este recusou-a, pois havia jurado nunca se casar. O homem por quem ela se apaixonou também a rejeitou. Ela se retirou para a floresta e começou a praticar severíssima ascese. Todo esse tempo, guardava um ressentimento irracional em relação a Bhīshma e tinha a firme intenção de destruí-lo. Quando, em razão de suas práticas ascéticas, Shiva se manifestou diante dela e profetizou que ela renasceria como homem e mataria Bhīshma, ela se matou no ato. No décimo dia da guerra, Ambā, renascida como Shikhandin, conseguiu furar o peito de Bhīshma com dez flechas. Bhīshma considerou Shikhandin como mulher até o fim e provocava-o por causa disso. Com seus poderes yogues, ele adiou em dez dias sua morte inevitável, decorrente dos ferimentos, para garantir que deixaria a Terra num momento auspicioso, o grande guerreiro-de-carruagens, e Dhrishtadyumna, Virāta e Sātyaki, os inconquistados,
1.18 Drupada e os filhos-de-Draupadī, ó Senhor da Terra, bem como o filho–de-Subhadrā, de poderosos braços – todos eles, juntos, sopraram cada qual [o seu] búzio.
1.19 Esse alvoroço penetrou os corações dos filhos-de-Dhritarāshtra, fazendo com que o céu e a terra ressoassem em balbúrdia.
1.20 Então, vendo os filhos-de-Dhritarāshtra formados-para-abatalha, o filho-de-Pāndu [Arjuna], [tendo o] macaco como estandarte14O estandarte de Arjuna ostentava a figura de um macaco (kapi), em específico de Hanumat (nominativo: Hanumān), rei dos macacos. Hanumat é filho do Deus do Vento. Assim, representa simbolicamente a respiração, que Krishna manda Arjuna dominar com o objetivo de controlar a mente (ver, p. ex., 5.28), tomou seu arco no embate das armas.
1.21Em seguida, ó Senhor da Terra, dirigiu-se a Hrishīkesha [Krishna] com estas palavras: Detém minha carruagem no meio, entre os dois exércitos, ó Acyuta15Acyuta, outro epíteto de Krishna, significa “não caído”, ou seja, inabalável e imperecível
1.22 para que eu possa vistoriar os que estão reunidos, ansiosos para a batalha, [e ver] com quem devo lutar neste empreendimento de combate (rāna).
1.23 Contemplo-os aqui reunidos, prontos para lutar e desejosos de agradar na batalha (yuddha) aos filhos-de-Dhritarāshtra, de mente maligna.
[Samjaya disse:]
1.24 Assim interpelado por Gudākesha 16Gudākesha significa “[aquele cujo] cabelo [é amarrado na forma de uma] bola”, ou seja, “aquele que usa um coque”. O sentido esotérico é “[aquele que] dominou o sono” [Arjuna], Hrishīkesha deteve a excelente carruagem entre os dois exércitos, ó descendente-de-Bharata.
1.25 Diante de Bhīshma, Drona e todos os [outros] soberanos da terra, ele disse:
Ó filho-de-Prithā 17No epíteto Pārtha ou “filho-de-Prithā”, referente a Arjuna, Prithā é um nome alternativo de Kuntī, mãe dos cinco Pāndavas. Ver também a nota 19 em 1.27., contempla estes Kurus [aqui] reunidos.
1.26 O filho-de-Prithā viu em pé, ali, pais, avôs, preceptores, tios, irmãos, filhos, netos, bem como camaradas,
1.27 sogros, [amigos] de bom coração, em ambos os exércitos, e vendo-os – todos os seus parentes – em pé [formados para a batalha], o filho-de-Kuntī 18“Filho-de-Kuntī” (Kaunteya) é outro epíteto frequente de Arjuna. Kuntī, chamada inicialmente Prithā, era irmã de Vasudeva, pai de Krishna. O pai dela, o rei Shūrasena, havia prometido dar a primeira filha que tivesse a seu sobrinho Kuntibhoja, que não tinha filhos. Assim, Prithā tornou-se filha adotiva de seu primo Kuntibhoja e passou desde então a ser conhecida como Kuntī. [Arjuna]
1.28 encheu-se de profunda pena. Desalentado, assim falou: Ó Krishna, vendo estes, meu próprio povo, em pé [diante de mim] ansiosos para lutar,
1.29 meus membros desfalecem, minha boca resseca, o tremor [toma conta de] meu corpo e [meus] pelos se eriçam [de pesar].
1.30 [O arco] Gāndīva 19Os indianos, como outros povos, costumavam dar nome às armas dos heróis. A palavra gāndīva (que também se escreve gāndiva) é o nome do arco de Arjuna, que lhe foi dado por Agni, deus do fogo.cai da [minha] mão e [tenho a] pele completamente em chamas; tampouco sou capaz de permanecer em pé, e minha mente parece girar.
1.31 Além disso, vislumbro augúrios funestos, ó Keshava 20Keshava significa “cabeludo”, referência aos longos cabelos de Krishna.; nem tampouco sou capaz de divisar [que] bem (shreya) [pode haver] em matar [meu] próprio povo em combate.
1.32 Não almejo a vitória, ó Krishna, nem ainda o reino [que perdi], nem os prazeres. De que nos [serviria] o reino, ó Govinda 21Govinda significa literalmente “pastor de vacas”. É um antigo epíteto de Indra no RigVeda e aqui é aplicado a Krishna. A palavra go pode denotar quer o masculino “touro”, quer a feminina “vaca”. Esotericamente, refere-se aos tesouros espirituais. A mesma palavra também pode significar os sentidos e a terra.? De que [adiantam] as alegrias, ou [mesmo] a vida?
1.33 Aqueles em nome de quem buscamos o reino, as alegrias e os prazeres estão [aqui prontos] para o combate, abrindo mão de [suas] vidas e riquezas –
1.34 preceptores, pais, filhos, assim como avôs, tios [maternos], sogros, netos, cunhados, bem como [outros] parentes
1.35 Não desejo matá-los, ó Madhusūdana 22Sobre o epíteto Madhusūdana, ver a nota 4 em 1.14., mesmo que venham a dar cabo [de mim]; [não o desejo] nem mesmo para obter domínio sobre o tríplice mundo 23A palavra composta trailokya (“tríplice mundo”) refere-se à terra, à atmosfera e ao céu. Este último é a morada das divindades., que [dirá] sobre a terra?
136 Se matarmos os filhos-de-Dhritarāshtra, que deleite seria o nosso, ó Janārdana 24O epíteto Janārdana, referente a Krishna, significa “[aquele que] agita (ardana) o povo”, referindo-se aos pecadores.? Somente o pecado aderiria a nós caso matássemos esses [transgressores]-cujos-arcos-estãoretesados.
1.37 Portanto não nos é permitido matar os filhos-de-Dhritarāshtra [que são, afinal de contas,] nossos parentes. Pois como poderemos ser felizes, ó Mādhava 25Sobre Mādhava, ver a nota 4 em 1.14., se chacinarmos nosso próprio povo?
1.38 Mesmo que eles, [com a] mente corrompida pela cobiça, não sejam capazes de ver que destruir a família é uma mácula e que trair um amigo é uma transgressão,
1.39 como não teríamos a sabedoria de dar as costas a esse pecado, [nós que] vislumbramos a mácula de destruir a família 26A palavra kula, aqui traduzida como “família”, também pode significar a “comunidade” ou a “sociedade”. Da perspectiva tradicional, a sociedade é uma única grande família que segue uma única lei espiritual. Ela prospera quando essa lei é observada e decai quando a lei é transgredida., ó Janārdana?
1.40 Com a destruição da família, as perenes leis familiares caem por terra. Uma vez extinta a lei, a anomia (adharma) se abate sobre toda a família.
1.41 Pela prevalência da anomia, ó Krishna, as mulheres da família se corrompem; uma vez maculadas as mulheres, ó descendente-de-Vrishni 27Vārshneya significa literalmente “descendente-de-Vrishni”. Vrishni, que sucedeu Madhu, foi um grande rei da dinastia Yadu, à qual Krishna pertencia., ocorre a mistura das classes 28O termo varna costuma ser traduzido como “casta”, mas significa literalmente “cor” e denota “classe social” [não no sentido econômico, de riqueza e pobreza, mas no sentido da função cumprida pela pessoa na sociedade – N.T.]. A sociedade indiana distingue quatro castas ou classes sociais – a dos brāhmanas (sacerdotes), a dos kshatriyas (governantes e guerreiros), a dos vaishyas (comerciantes, artesão e camponeses) e a dos shūdras (servos). Muitos entenderam que a noção de “cor” tem, nesse contexto, um sentido racial,
mas isso pode não ser verdade. Uma interpretação psicológica ou espiritual é igualmente possível. O indivíduo “escuro” seria escuro do ponto de vista espiritual ou moral..
1.42 [Essa] mistura [leva] ao inferno a família e os que a destroem. Além disso, seus antepassados caem 29Pensa-se que o estado póstumo dos antepassados (pitri) depende das oferendas diárias de alimento. O descaso para com essa obrigação os condena a “cair” em estratos inferiores e menos prazerosos da existência póstuma. [quando] as oferendas-rituais (kriyā) de bolos de arroz e água deixam de ser apresentadas.
1.43 Por essas falhas dos que destroem a família, por [obra dos] que misturam as classes, as leis da casta e a perene lei familiar são destruídas.
1.44 Para os homens que destruíram a lei familiar, ó Janārdana, há uma morada garantida no inferno; assim ouvimos.
1.45 Ah! Ai! [Estamos de fato determinados a] cometer um grande pecado, pois estamos dispostos a matar nosso próprio povo por cobiçar os prazeres da realeza.
1.46 Se no combate [iminente] os filhos-de-Dhritarāshtra, de armas nas mãos, viessem a matar a mim, desarmado e sem oferecer resistência, isso me seria mais agradável.
1.47 Tendo assim falado no [meio do] conflito (samkhya), Arjuna desabou no banco da carruagem, lançando fora o arco e as flechas, a mente agitada pela tristeza30A presença tanto da pena (kripā) – ver 1.28 – quanto da tristeza (shoka) na mente de Arjuna indica que seu desalento não era do tipo convencional – não tinha, de modo algum, sido desencadeado nem pelo apego nem pela covardia. Era sinal de uma genuína crise moral e espiritual
Notas de Rodapé
- 1Aqui, a expressão mahā-rathāh (lit. “grandes carruagens”) não se refere à carruagem em si, mas ao hábil senhor da carruagem (ratha-īsha), que não é o cocheiro (rathin). Arjuna, por exemplo, era o senhor da carruagem, e Krishna, que não lutou propriamente na guerra dos Bharatas, serviu como seu cocheiro. Os guerreiros – todos eles heróis – mencionados nos versículos seguintes têm suas próprias histórias e são discutidos no curso a distância sobre o Bhagavad-Gītā ministrado pela Traditional Yoga Studies, www.traditionalyogastudies.com.
- 2A expressão “nascidos duas vezes” (dvija) – de dvi (“duas vezes”) e ja (“nascido”) – refere-se às castas superiores da hierarquia tradicional de classes da Índia: os brāhmanas (elite sacerdotal), os kshatriyas (classe militar) e os vaishyas (comerciantes, artesãos e camponeses). Considera-se que todos os membros dessas castas “nascem” uma segunda vez por meio do processo formal de investidura com o cordão sagrado. A casta dos shūdras (servos) não tem esse privilégio.N
- 3A versão aceita desse versículo é problemática, pois dá a entender que o imenso exército dos Kauravas, comandado por Bhīshma, é menor (mais “limitado”) que o dos Pāndavas, comandado por Bhīma. De acordo com outros trechos do épico, isso não é verdade. Optei, portanto, por uma versão alternativa disponível, já conhecida por Bhāskara, comentador posterior a Shankara (século IX): aparyāpta tad asmākam balam bhīmaabhirakshitam / paryāptam tv idam eteshām balam bhīshma-abhirakshitam. Esta interpretação também foi aceita por Abhinavagupta, grande erudito e mestre da Caxemira
- 4A expressão “nascidos duas vezes” (dvija) – de dvi (“duas vezes”) e ja (“nascido”) – refere-se às castas superiores da hierarquia tradicional de classes da Índia: os brāhmanas (elite sacerdotal), os kshatriyas (classe militar) e os vaishyas (comerciantes, artesãos e camponeses). Considera-se que todos os membros dessas castas “nascem” uma segunda vez por meio do processo formal de investidura com o cordão sagrado. A casta dos shūdras (servos) não tem esse privilégio.
- 5Alguns comentadores antigos derivam o nome Hrishīkesha de hrishīka-īsha ou “senhor dos sentidos”, mas essa etimologia é mais esotérica que literal. O sentido literal é “[aquele cujos] pelos (kesha) estão arrepiados [de excitação ou êxtase]”, ou seja, “pelos arrepiados”.
- 6A importância dos búzios se verifica pelo fato de eles receberem nomes individuais. Pāncajanya significa literalmente “relativo a Pancajana”. Depois de matar o demônio Pancajana, que morava dentro de um búzio, Krishna tomou o búzio para si.
- 7Esse epíteto de Arjuna significa literalmente “conquistador de riquezas” (dhanamjaya) e se refere aos bens materiais ou espirituais conquistados.
- 8A expressão “de barriga de lobo” refere-se ao apetite gigantesco do musculoso Bhīma
- 9Paundra, o búzio de Bhīma, deriva seu nome daquele de uma tribo que lutou ao lado dos Pāndavas
- 10Ananta-vijaya significa “vitória infinita”. Pode-se ver aí uma referência oculta ao dharma, o qual é sempre vitorioso e é a própria essência de Yudhishthira, que, como já foi dito, foi gerado pelo deus Dharma. (Ver Parte Um, Capítulo 3, “Os Personagens do Gītā”.)
- 11Sughosha é derivado das palavras que significam “bom” (su) e “som” e pode ser traduzido como “de bom som” ou, de modo mais poético, “melodioso”.
- 12Mani-pushpaka significa “florido de pedras preciosas”.
- 13Shikhandin realizou a façanha de matar o invencível Bhīshma, pois este se recusava a lutar contra uma mulher. Em sua vida imediatamente anterior, Shikhandin tinha sido Ambā, uma filha do senhor de Kāshi (a atual Varanasi). Naquela existência, ela deveria ter se casado com Bhīshma, mas este recusou-a, pois havia jurado nunca se casar. O homem por quem ela se apaixonou também a rejeitou. Ela se retirou para a floresta e começou a praticar severíssima ascese. Todo esse tempo, guardava um ressentimento irracional em relação a Bhīshma e tinha a firme intenção de destruí-lo. Quando, em razão de suas práticas ascéticas, Shiva se manifestou diante dela e profetizou que ela renasceria como homem e mataria Bhīshma, ela se matou no ato. No décimo dia da guerra, Ambā, renascida como Shikhandin, conseguiu furar o peito de Bhīshma com dez flechas. Bhīshma considerou Shikhandin como mulher até o fim e provocava-o por causa disso. Com seus poderes yogues, ele adiou em dez dias sua morte inevitável, decorrente dos ferimentos, para garantir que deixaria a Terra num momento auspicioso
- 14O estandarte de Arjuna ostentava a figura de um macaco (kapi), em específico de Hanumat (nominativo: Hanumān), rei dos macacos. Hanumat é filho do Deus do Vento. Assim, representa simbolicamente a respiração, que Krishna manda Arjuna dominar com o objetivo de controlar a mente (ver, p. ex., 5.28)
- 15Acyuta, outro epíteto de Krishna, significa “não caído”, ou seja, inabalável e imperecível
- 16Gudākesha significa “[aquele cujo] cabelo [é amarrado na forma de uma] bola”, ou seja, “aquele que usa um coque”. O sentido esotérico é “[aquele que] dominou o sono”
- 17No epíteto Pārtha ou “filho-de-Prithā”, referente a Arjuna, Prithā é um nome alternativo de Kuntī, mãe dos cinco Pāndavas. Ver também a nota 19 em 1.27.
- 18“Filho-de-Kuntī” (Kaunteya) é outro epíteto frequente de Arjuna. Kuntī, chamada inicialmente Prithā, era irmã de Vasudeva, pai de Krishna. O pai dela, o rei Shūrasena, havia prometido dar a primeira filha que tivesse a seu sobrinho Kuntibhoja, que não tinha filhos. Assim, Prithā tornou-se filha adotiva de seu primo Kuntibhoja e passou desde então a ser conhecida como Kuntī.
- 19Os indianos, como outros povos, costumavam dar nome às armas dos heróis. A palavra gāndīva (que também se escreve gāndiva) é o nome do arco de Arjuna, que lhe foi dado por Agni, deus do fogo.
- 20Keshava significa “cabeludo”, referência aos longos cabelos de Krishna.
- 21Govinda significa literalmente “pastor de vacas”. É um antigo epíteto de Indra no RigVeda e aqui é aplicado a Krishna. A palavra go pode denotar quer o masculino “touro”, quer a feminina “vaca”. Esotericamente, refere-se aos tesouros espirituais. A mesma palavra também pode significar os sentidos e a terra.
- 22Sobre o epíteto Madhusūdana, ver a nota 4 em 1.14.
- 23A palavra composta trailokya (“tríplice mundo”) refere-se à terra, à atmosfera e ao céu. Este último é a morada das divindades.
- 24O epíteto Janārdana, referente a Krishna, significa “[aquele que] agita (ardana) o povo”, referindo-se aos pecadores.
- 25Sobre Mādhava, ver a nota 4 em 1.14.
- 26A palavra kula, aqui traduzida como “família”, também pode significar a “comunidade” ou a “sociedade”. Da perspectiva tradicional, a sociedade é uma única grande família que segue uma única lei espiritual. Ela prospera quando essa lei é observada e decai quando a lei é transgredida.
- 27Vārshneya significa literalmente “descendente-de-Vrishni”. Vrishni, que sucedeu Madhu, foi um grande rei da dinastia Yadu, à qual Krishna pertencia.
- 28O termo varna costuma ser traduzido como “casta”, mas significa literalmente “cor” e denota “classe social” [não no sentido econômico, de riqueza e pobreza, mas no sentido da função cumprida pela pessoa na sociedade – N.T.]. A sociedade indiana distingue quatro castas ou classes sociais – a dos brāhmanas (sacerdotes), a dos kshatriyas (governantes e guerreiros), a dos vaishyas (comerciantes, artesão e camponeses) e a dos shūdras (servos). Muitos entenderam que a noção de “cor” tem, nesse contexto, um sentido racial,
mas isso pode não ser verdade. Uma interpretação psicológica ou espiritual é igualmente possível. O indivíduo “escuro” seria escuro do ponto de vista espiritual ou moral. - 29Pensa-se que o estado póstumo dos antepassados (pitri) depende das oferendas diárias de alimento. O descaso para com essa obrigação os condena a “cair” em estratos inferiores e menos prazerosos da existência póstuma.
- 30A presença tanto da pena (kripā) – ver 1.28 – quanto da tristeza (shoka) na mente de Arjuna indica que seu desalento não era do tipo convencional – não tinha, de modo algum, sido desencadeado nem pelo apego nem pela covardia. Era sinal de uma genuína crise moral e espiritual