CAPÍTULO 2 O Yoga do Conhecimento

CAPÍTULO 2  O Yoga do Conhecimento

Samjaya disse:

2.1 A ele, assim tomado de pena [e] desesperançado, os olhos baixos cheios de lágrimas, Madhusūdana 1Sobre o epíteto Madhusūdana, atribuído a Krishna, ver a nota 4 em 1.14. [Krishna] disse esta palavra:

[Disse o Senhor Bendito:]

2.2 De onde te vem esta fraqueza em [tal] dificuldade? [Esta atitude] digna de um não-ārya 2O povo védico se diferenciava dos outros povos por sua conduta “nobre” (ārya), contraposta à conduta bárbara. O fato de designarem-se como arianos foi muitas vezes interpretado em termos raciais, mas essa noção caiu em descrédito depois das alegações dos ideólogos e dos apologistas da guerra do Terceiro Reich. A antiga ideia de que os arianos invadiram o norte da Índia por volta de 1500 a.C., expulsando ou subjugando a população nativa, tem sido seriamente questionada, de tal modo que o próprio entendimento racial da palavra ārya passou a ser posto em dúvida. não-conduz-ao-céu e atrai a desonra, ó Arjuna.

2.3 Não te faças efeminado 3A palavra klaibya (“efeminação”) é derivada do adjetivo klība = “emasculado”, “pouco viril”, “covarde”., ó filho-de-Prithā 4Sobre o epíteto “filho-de-Prithā” (Pārtha), aplicado a Arjuna, ver a nota 18 em 1.25., pois isso não te cai bem. Lança fora esse vil desânimo! Levanta-te, ó Paramtapa! 5O epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, significa “Flagelo de Outrem” [ou seja, dos inimigos]. Arjuna disse:

2.4 Como [posso] atacar Bhīshma e Drona em combate com flechas, ó Madhusūdana? [Eles são] dignos de veneração, ó Arisūdana 6Arisūdana significa “matador do inimigo” (ari).

2.5 Pois [seria] melhor aqui [neste] mundo comer alimentosrecebidos-como-esmola que matar mestres tão dignos.

Embora estejam em busca de riquezas, eles são meus mestres [e], caso eu os matasse, não gozaria aqui [na terra] senão de prazeres manchados de sangue 7Esse versículo, como os três seguintes, foi composto na cadência trishtubh, que geralmente tem 44 sílabas (4 versos de 11 sílabas), em lugar da cadência shloka, de 16 sílabas, em que a maior parte do Gītā é composta. Aqui, entretanto, os dois primeiros versos da estrofe 6 têm ambos uma sílaba a mais (o que é permitido nessa cadência).

2.6 Tampouco sabemos o que seria [mais] importante para nós:que sejamos vitoriosos ou que eles nos vençam. Tendo chacinado os filhos-de-Dhritarāshtra formados em batalha à [nossa] frente, não desejaríamos [mais] viver.

2.7 Meu ser-próprio 8Svabhāva, aqui traduzido por “ser-próprio”, é um dos conceitos mais importantes do Mahābhārata e do Gītā. Vai além da “natureza íntima” ou da “psique”. Também representa o senso de dever que nasce da posição que a pessoa ocupa na sociedade em razão de seu nascimento. Assim, um guerreiro como o príncipe Arjuna – se não estiver perplexo ou corrompido – ver-se-ia vinculado ao dever inquestionável de proteger o povo e a lei moral e espiritual do país. Em outras palavras, o svabhāva de Arjuna está intimamente ligado ao seu destino de guerreiro. está corrompido pela mácula da pena [mal direcionada] 9O termo kārpanya, aqui traduzido por “pena”, é derivado da mesma raiz verbal do termo kripā. Parece sugerir um sentimento um pouco menos sereno que a compaixão (karunā).. Com a mente (cetas) confusa (sammūdha) no que se refere à lei, pergunto-te qual é o melhor [curso de ação]. Diz-me com certeza. Aproximo-me de ti como um discípulo. Instrui[-me].

2.8 Pois não consigo ver o que poderia dissipar o sofrimento [que] resseca [meus] sentidos, [mesmo que eu viesse] a adquirir domínio próspero e inigualado sobre a terra ou até soberania sobre as divindades.

 Samjaya disse:

2.9 Assim falou Gudākesha 10Sobre o epíteto Gudākesha, aplicado a Arjuna, ver a nota 17 em 1.24., Flagelo dos Inimigos, a Hrishīkesha 11Sobre o epíteto Hrishīkesha, aplicado a Krishna, ver a nota 5 em 1.15.. [E], tendo declarado a Govinda 12Sobre o epíteto Govinda, aplicado a Krishna, ver a nota 22 em 1.32. “Não lutarei”, silenciou.

2.10 [Enquanto estavam parados] entre os dois exércitos, ó descendente-de-Bharata, Hrishīkesha, como quem ri, disse esta palavra a ele, o desalentado [Arjuna]:

Disse o Senhor Bendito:

2.11 Lamentas 13O texto em sânscrito diz “lamentaste” (anvashocas tvam). [aqueles por quem] não se deve lamentar, e [no entanto] declaras palavras de sabedoria. Os eruditos (pandita) não sofrem nem pelos mortos nem pelos vivos 14O texto em sânscrito diz gata-asūn-agata-asūn, “sopros vitais idos, sopros vitais não idos”. A palavra asu, aqui usada no plural, é um sinônimo de prāna e significa “força vital” ou “respiração”.

«Dominado pelo desalento e pela ilusão, teu eu interior, assediado por aquilo-que-é-demasiado-humano (mānushya), é falto de entendimento. [Foste] tomado pela pena ao veres [teus] parentes caírem nas mandíbulas da morte. » 15Essa estrofe adicional foi composta na cadência trishtubh.

2.12 Em verdade, nunca [houve um tempo em que] eu não fui, [nem em que] tu não foste, [nem em que] estes chefes não foram, nem tampouco nenhum de nós deixará de ser doravante.

2.13 Assim como neste corpo a essência-incorporada 16A essência-incorporada (dehin), ou simplesmente o “incorporado”, é o Si Mesmo em seu aspecto imanente de espírito ou princípio vital (jīva) do ser vivente. Em outras partes do Gītā, também é chamado dehabhrit (“aquele que usa o corpo como uma veste”) e shārīrin (“incorporado”). [vive] a infância, a juventude e a velhice, assim também ela obtém outro corpo [após a morte]. O [homem] sensato não se deixa confundir por isso.

2.14 Os contatos materiais 17Em seu comentário sobre esse versículo, Shri Shankara interpreta mātrā (“medida/matriz”; aqui, “materiais”) no sentido específico de tanmātra (de tad “aquilo” + mātrā) ou “elemento sutil”, a saber, os princípios sutis do som, da textura, da forma, do gosto e do cheiro. [ou seja, as sensações], ó filhode-Kuntī 18Sobre o epíteto “filho-de-Kuntī” (Kaunteya), aplicado a Arjuna, ver a nota 19 em 1.27., de fato dão origem ao calor e ao frio, ao prazer e à dor; vêm e vão [e portanto são] impermanentes.

Suporta-os [pacientemente], ó descendente-de-Bharata!

2.15 Pois o homem a quem estes [pares-de-opostos 19Os pares-de-opostos (dvandva) são qualidades contrárias como o calor e o frio, a umidade e a secura, que tendem a causar sofrimento.] não afligem, o sábio (dhīra) [para quem] a dor e o prazer são iguais 20Sama é um termo importante na filosofia de Krishna. Em 2.48, o próprio Yoga é definido como samatva, “igualdade” ou “equanimidade”; e a experiência que coroa todo o Yoga é a “visão da igualdade” (sama-darshana), em que todos os seres e todas as coisas – grandes ou pequenos – são vistos como Um único ser sempre igual a Si Mesmo e, portanto, aparecem todos como dotados do mesmo valor. A visão da igualdade depende de uma equanimidade e de um contentamento profundos, que permitem ao praticante de Yoga reagir sem agitação nem fortes predisposições kármicas às experiências agradáveis e desagradáveis., ó Purusharshabha 21O epíteto Purusharshabha (de purusha + rishabha), aplicado a Arjuna, significa literalmente “Touro [entre os] Homens”. – ele é talhado para a imortalidade 22A imortalidade, aqui, significa a libertação espiritual derradeira (moksha). Como observa Sarvepalli Radhakrishnan (1948) em seu excelente comentário sobre esse versículo: “A vida eterna é diferente da sobrevivência à morte. Esta se dá com todos os seres que tomaram um corpo; aquela é a transcendência da vida e da morte.”

2.16 Não há vir-a-ser daquilo que não é (asat) nem há desaparecimento daquilo que é (sat). Além disso, o “fim” 23O sentido de anta (“fim”), nesse contexto, precisa ser esclarecido. Nem Shankara nem Abhinavagupta comentam especificamente essa palavra. Radjakrishnan (1948) usa “conclusão”; Sargeant (1984), “certeza”; Hill (1928/1966) e van Buitenen (1981), “limite”. O fim de ambas as proposições – ou seja, sua justificativa final – é a realização propriamente dita da liberdade absoluta. Os libertos são os verdadeiros conhecedores. “Veem” sem nenhuma intermediação que aquilo que é sempre é. Para as outras pessoas, as duas proposições – a de que aquilo que não é não pode vir a ser e aquilo que é não pode deixar de ser – são pouco mais que opiniões. de ambos é visto pelos que veem a Realidade 24A palavra tattva significa literalmente “ipseidade” (o que Immanuel Kant chamou de Ding an sich ou “coisa em si”) e refere-se à natureza de uma coisa como ela realmente é.O tattva-darshin, “aquele que vê a Realidade”, é a pessoa cujo conhecimento é “portador da verdade” (ritambhara), como diz Patanjali em seu Yoga-Sūtra (1.48). A “coisa” de que aqui se trata é a “coisa” suprema e derradeira, que não é “nada em particular” – a Realidade permanente da qual, antes da iluminação, só podemos apreender lampejos.

2.17 No entanto conhece como indestrutível aquilo pelo qual todo este [mundo] foi distribuído 25Sobre “distribuído”, ver a nota 33 em 4.32.. Ninguém é capaz de efetuar a destruição dessa imutável (avyaya) [Realidade].

2.18 Estes corpos do eterno [Si Mesmo (ātman)] incorporado, o Indestrutível, o Incomensurável, são ditos finitos. Luta, pois, ó descendente-de-Bharata!

2.19 Quem concebe este [Si Mesmo] como o que mata e quem [O] concebe como o que é morto – nenhum dos dois tem conhecimento. Este [Si Mesmo] não mata nem é morto.

2.20 Este [Si Mesmo] não nasceu nem jamais morrerá; não tendo-vindo-a-ser, tampouco deixará-de-ser novamente.

Este [Si Mesmo] não nascido, eterno, perene, primordial, não morre quando morre o corpo 26Essa estrofe está na cadência trishtubh.

2.21 O homem (purusha) que conhece este [Si Mesmo] Indestrutível, Eterno, Não Nascido, Imutável – como e quem pode ele matar [ou] fazer matar, ó filho-de-Prithā?

2.22 Assim como um homem, lançando fora as vestes usadas, toma outras novas, assim também o [Si Mesmo] incorporado, lançando fora os corpos usados, entra em outros [corpos] novos 27Essa estrofe também está na cadência trishtubh.

2.23 As armas não fendem este [Si Mesmo]. O fogo não aquece este [Si Mesmo]. A água não umedece este [Si Mesmo]. O vento não [O] seca 28Essa estrofe está na cadência trishtubh. Ver a nota 7 em 2.5..

2.24 Este [Si Mesmo] é incortável; é inaquecível, inumedecível, insecável. Esta [Realidade] perene é eterna, onipresente, estável, imóvel.

2.25 Este [Si Mesmo] é chamado não manifesto (avyakta), impensável, imutável. Logo, conhecendo este [Si Mesmo] como tal, não deves lamentar!

2.26 Além disso, [mesmo que] consideres que este [Si Mesmo] eternamente nasce e eternamente morre [com o corpo], não deves lamentar por ele, ó [Arjuna] dos braços fortes.

2.27 Pois certa é a morte de tudo-quanto-nasce e certo é o nascimento de tudo-quanto-morre. Portanto, no [que se refere a este] assunto inevitável, não deves lamentar.

2.28 Ó descendente-de-Bharata, os seres são não manifestos em [seu] princípio, manifestos (vyakta) em [seus] estados intermediários e, com efeito, não manifestos em seu final. Que [razão existe] para lamentar esse fato?

2.29 Uma pessoa vê este [Si Mesmo como] maravilhoso 29Abhinavagupta (em cujo comentário esse versículo tem o número 2.30) pergunta: “Se esse Si Mesmo é, portanto, indestrutível, por que [essa verdade] não é apreendida por todos?”. Responde à própria pergunta declarando que somente algumas pessoas chegam a realizar o Eu, sendo essa Realização necessária para que sua natureza maravilhosa seja percebida.; outra, do mesmo modo, fala deste [Si Mesmo como] maravilhoso; outra [ainda] ouve que este [Si Mesmo é] 30Essa estrofe também está na cadência trishtubh, mas tem uma sílaba a mais no segundo verso.

2.30 Esta essência-incorporada (dehin) é eternamente inviolável, [conquanto resida] no corpo de todos [os seres], ó descendente-de-Bharata. Portanto, não te deves lamentar por ser nenhum.31Literalmente: “Portanto, não te deves lamentar por todos os seres” (sarvāni bhūtāni).

2.31 Além disso, em vista da tua lei-própria 32Como o conceito de svabhāva (“ser-próprio”), o conceito correlato svadharma (“leiprópria”) é noção crucial na ética do Mahābhārata. Trata-se, em resumo, da conduta normativa que nasce do svabhāva. No caso de Arjuna, o fato de ter nascido na casta guerreira facultava-lhe inúmeros privilégios mas também impunha-lhe muitas obrigações, especialmente as de proteger o povo e preservar a lei de sua sociedade, lei essa que tinha um fundamento espiritual., não deves hesitar. Pois para um guerreiro não há nada melhor que uma guerra conforme-à-lei 33A expressão dharmya-yuddha tem sido frequentemente traduzida por “guerra justa”. O termo dharmya, no entanto, implica muito mais que isso, pois o conceito de dharma vai além da mera “justiça”. O dharma está ligado à própria ordem cósmica (rita), responsável pela sucessão regular das estações e pelo movimento ritmado dos astros. Dharma realiza no nível humano o que rita realiza no nível ambiental mais amplo.

2.32 [Ademais,] felizes são os guerreiros, ó filho-de-Prithā, [que] se deparam com uma tal batalha (yuddha), [a qual] ocorre por acaso 34 O termo yadricchā (“acaso”) é usado aqui em sentido meio vago, pois, num universo regido pela mão de ferro da lei do karma, o acaso não existe. Alguns tradutores verteram o termo por “boa fortuna” ou “sorte”. Podemos indagar que sorte poder haver em ser morto e ir para o céu, visto que o céu, tradicionalmente, é considerado muito inferior à libertação espiritual. O sentido literal de yadricchā (de yad, “o que”, + ricchā) é “aquilo que é infligido” ou, num nível mais coloquial, “o que acontece”. e abre as portas do céu [para os que combatem corajosamente].

2.33 Ora, se não empreenderes este combate (samgrāma) conforme-à-lei, fugindo [tanto à] lei-própria [quanto à] honra, incorrerás em pecado.

2.34 Além disso, [todos] os seres relatarão tua desonra para sempre. E, para o [homem] honrado, a desonra é pior do que a morte 35Literalmente, “ultrapassa a morte” (maranād atiricyate).

2.35 Eles, os grandes guerreiros-de-carruagens, ver-te-ão [como aquele que] se retirou do combate (rāna) por medo. Tornarte-ás [objeto de] desdém para aqueles que [por ora] têm [a tina] mais alta estima.

2.36 E muitas palavras injuriosas dirão os que te desejam mal, ridicularizando tuas proezas. O que [poderia ser] mais doloroso (duhkha) que isso?

2.37 [Caso sejas] morto, alcançarás o céu. [Caso sejas] vitorioso, gozarás [de domínio sobre] a terra. Portanto, ó filho-de-Kuntī, levanta-te resoluto para a batalha! 36Poderíamos ter a impressão de que, nesse trecho, Krishna está tentando fazer seu discípulo se sentir culpado. É fato que o divino mestre usa argumentos convencionais para motivar o discípulo. Mas temos de recordar a importante qualificação do versículo 2.10, segundo a qual Hrishīkesha comunicou seus ensinamentos “como quem ri” (prahasann iva). É fácil entender daí que ele estava, com divina benignidade, provocando Arjuna pela zombaria. Para produzir no discípulo uma mente clara (sattva), o mestre precisa antes de tudo dinamizar a mente letárgica, introduzindo nela a qualidade rajas. A progressão, portanto, é tamas g rajas g sattva. É claro que, no fim, as três qualidades-primárias (guna) têm de ser transcendidas para que ocorra a libertação espiritual. Do ponto de vista mais elevado, até sattva, o princípio de lucidez, representa uma limitação. (Sobre os gunas, ver a nota 44 em 2.45.)

2.38 Tendo como iguais o prazer e a dor, o lucro e a perda, a vitória e a derrota, cinge-te para a batalha! Assim não incorrerás em pecado.

2.39 Esta é a sabedoria 37Buddhi é um termo crucial do Yoga e do Sāmkhya. Tem ampla gama de significados, entre os quais os de “mente”, “cognição”, “entendimento”, “sabedoria” e “faculdade-da-  sabedoria” (ou mente superior). Nas tradições do Yoga e do Sāmkhya, significa um aspecto particular da mente, a saber, a faculdade responsável pelo discernimento entre o real e o irreal – o tipo de sabedoria sem o qual o crescimento espiritual não é possível. Embora a noção de “faculdades mentais” já não seja muito aceita pelos psicólogos, esse conceito parece adequado no contexto da ontologia e da psicologia do Yoga e do Sāmkhya. Nesse sentido, buddhi será traduzido aqui quer por “sabedoria”, quer por “faculdade-dasabedoria”. revelada a ti de acordo com o Sāmkhya 38A tradição do Sāmkhya, intimamente ligada ao Yoga, trata da enumeração (donde samkhya, “número”) das categorias básicas (tattva) da existência, tais como o Espírito (purusha) e a Matéria (prakriti, literalmente “procriadora”). O primeiro não tem divisões, mas da segunda procedem as outras categorias que constituem o universo tal como o conhecemos. São elas: a mente superior ou faculdade-da-sabedoria (buddhi), o princípio de individuação ou sentido-do-ego (ahamkāra), a mente inferior (manas), as dez faculdades (indriya) de cognição e ação, os cinco princípios elementais (tanmātra) e os cinco elementos corporais (bhūta).. Ouve [agora] sobre isto no Yoga. Jungido pela faculdade-da-sabedoria, transcenderás a prisão [dos efeitos] da ação, ó filho-de-Prithā.

2.40 Aqui, nenhum esforço é perdido; não há retrocesso. Mesmo um pouquinho desta lei salva [a pessoa] de grande temor.

2.41 A faculdade-da-sabedoria [que tem] por essência a determinação 39Vyavasāya, traduzido aqui por “determinação”, também já foi vertido como “resolução” e “vontade”. é única, ó Kurunandana 40O epíteto Kurunandana, aplicado a Arjuna, significa “alegria ou deleite (nandana) dos Kurus”. Aqui, a palavra Kuru é usada em sentido amplo e não se refere somente aos descendentes do rei Dhritarāshtra, mas a todos os descendentes do antigo rei Kuru, entre os quais se incluem não só os cem filhos-de-Dhritarāshtra, mas também os cinco filhos do rei Pāndu e todos os seus predecessores; a dinastia dos Kurus originou-se no deus Brahma e teve muitos reis, entre os quais Yayāti (ver a linhagem da dinastia Yadu, à qual pertencia Krishna, na nota 43 em 11.41). Deste, porém, passou a Puru, depois a treze outros reis, a Bharata, a dez outros reis, e por fim a Kuru.. Entretanto as faculdades-da-sabedoria dos destituídos de determinação têm muitos ramos e são infinitas.

2.42 [As pessoas] sem discernimento, deliciando-se com o conhecimento do Veda 41Veda significa aqui a revelação védica consubstanciada nas quatro coletâneas – RigVeda, Yajur-Veda, Sāma-Veda e Atharva-Veda – e nos textos sagrados explicativos a elas associados desde tempos muito antigos., ó filho-de-Prithā, proferem palavras floreadas, dizendo que nada mais existe 42Nesse caso, os comentários de Krishna não precisam ser entendidos como uma condenação da própria tradição védica revelada, mas sim daqueles que têm para com ela uma atitude fundamentalista. Ver também 2.46.

2.43 Tendo o desejo por essência (ātman), intencionando o céu, [alegam elas] que o fruto da ação [ritual] será [um bom] renascimento; [e têm] muitos ritos especiais para a consecução da fruição e do domínio.

2.44 [Os que são] apegados à fruição e ao domínio [e cujas] mentes [são] “levadas embora” – sua faculdade-da sabedoria, [que tem] por essência a determinação, não se encontra estabelecida no êxtase 43A mente extática é uma mente plenamente concentrada. Nesse sentido, o termo samādhi poderia ser traduzido aqui por “concentração”.

2.45 A tríade das qualidades-primárias 44Traigunya, a “tríade das qualidades-primárias”, refere-se às três qualidades fundamentais (guna) da existência cósmica (prakriti): o princípio de lucidez e paz (sattva), o princípio de dinamismo (rajas) e o princípio de inércia (tamas). Por meio de infinitas combinações, essas três qualidades – guna significa “filamento” – entretecem as miríades de fenômenos do universo manifestado. [do universo manifestado] é o tema dos Vedas. Sê livre da triplicidade das qualidades-primárias, ó Arjuna, [sê] livre dos pares-de-opostos 45Sobre o termo dvandva (“pares-de-opostos”), ver a nota 19 em 2.15. e repousa sempre em sattva 46O composto nitya-sattva-stha pode significar quer “repousando no eterno sattva”, quer “repousando eternamente em sattva”. Essa segunda alternativa parece mais provável. Nesse contexto particular, a palavra sattva pode ser traduzida por “verdade” ou “realidade”, visto não poder referir-se ao sattva-guna, uma vez que Arjuna já recebeu a instrução de ir além das três qualidades primárias. A exortação de repousar sempre em sattva significa  cultivar a equanimidade, que é a manifestação de um estado mental sátvico. Quando a mente se encontra embebida em sattva, é capaz de dar o salto para a realização do Si Mesmo ou libertação espiritual. O termo sattva é um dos sinônimos de buddhi., sem [esforçar-te para] adquirir ou manter [coisa alguma]. [Sê] senhor de Ti! 47Note a inicial maiúscula em “senhor de Ti” (ātmavat). A pessoa mundana é senhora de si, acha que manda na própria vida e vive centrada no ego. Mas o aspirante espiritual procura se identificar com o Si Mesmo transcendente, ou, antes, procura deixar que a consciência de sua permanente identidade com o Si Mesmo transcendente se afirme com mais força que sua identificação provisória com a mente e a individualidade.

2.46 Para o brâmane conhecedor, os Vedas em sua totalidade valem tanto quanto um reservatório de água [num terreno] completamente inundado 48Essa estrofe foi interpretada por alguns como um aviltamento dos Vedas, mas uma leitura cuidadosa mostra que isso não é verdade. O que Krishna está dizendo é que, para a pessoa que realizou a Si Mesma, todo o conhecimento do mundo, incluindo a grande sabedoria encontrada na revelação védica, perde a utilidade, pois o grande objetivo a que se refere essa sabedoria, ou seja, a libertação, já foi alcançado.

2.47 Na ação somente reside o teu legítimo-interesse (adhikāra), nunca em [seus] frutos 49O termo técnico phala, “fruto”, implica mais que “resultado”. Designa as consequências kármicas.. Não seja o fruto da ação a tua motivação, nem te apegues à inação (akarman).

2.48 Constante no Yoga, executa [tuas] ações abandonando o apego, ó Dhanamjaya 50Sobre o epíteto Dhanamjaya, aplicado a Arjuna, ver a nota 7 em 1.15., permanecendo [sempre] o mesmo no sucesso e no fracasso. O Yoga é chamado equanimidade.

2.49 Com efeito, a [mera] ação é muitíssimo inferior ao buddhiyoga, ó Dhanamjaya. Busca refúgio na faculdade-da-sabedoria! Dignos de pena são aqueles [cuja] motivação [é] o fruto [da ação].

2.50 [Aquele que está] jungido em buddhi deixa para trás, aqui, tanto as [ações] benfeitas quanto as malfeitas. Junge-te, portanto, ao Yoga. O Yoga é habilidade na ação.

2.51 Os sábios jungidos em buddhi, tendo renunciado ao fruto que nasce da ação, libertos da escravidão do nascimento [e da morte], vão para a região livre do mal.

2.52 Quando tua faculdade-da-sabedoria tiver atravessado a selva da ilusão, adquirirás o desinteresse pelo que [ainda] será ouvido e pelo que [já] foi ouvido [ou seja, pelo conhecimento mundano].

2.53 Quando a tua faculdade-da-sabedoria, distraída 51A palavra vipratipannā, traduzida aqui por “distraída”, indica uma mente agitada. É derivada da raiz pad (“cair”) + vi (“dis”) + prati (“na direção de/em relação a”). Foi traduzida para o inglês por disregarding (“desatenta” – Sargeant 1984), averse (“avessa” – Edgerton 1944) e not disturbed (“não perturbada” – Bhaktivedanta Swami 1983). pela tradição-revelada (shrūti), se puser invariável e serena no êxtase, alcançarás o [sublime estado do] Yoga.

Arjuna disse:

2.54 Qual é, ó Keshava 52Sobre o epíteto Keshava, aplicado a Krishna, ver a nota 21 em 1.31., a definição do [yogin] firmado na gnose 53O termo sânscrito prajnā corresponde ao grego gnosis, que significa uma espécie superior (“mística”) de conhecimento. O uso do equivalente grego me pareceu mais adequado que repetir o termo “sabedoria”, que combina bem com buddhi., em repouso no êxtase? Como fala [aquele que está] firmado na visão? 54A palavra dhī é um antigo termo védico que designa a visão inspirada de um vidente (rishi). Nesse sentido, sthita-dhī denota “[aquele cuja] visão está firme/estável”. É um sinônimo do termo composto sthita-prajnā (“firmado na gnose”), encontrado na mesma estrofe. Como se senta? Como se move?

Disse o Senhor Bendito:

2.55 Quando [um homem] abandona todos os desejos [que] entram na mente, ó filho-de-Prithā, e se contenta com o Si Mesmo em Si Mesmo, ele é considerado firmado na gnose.

2.56 [O homem cuja] mente não se agita no sofrimento (duhkha), [que] não tem desejos em [face do] prazer (sukha), [que é] livre da paixão (rāga), do medo (bhaya) e da ira (krodha), é considerado um sábio 55Muni é uma palavra muito usada para designar o “sábio”. Refere-se especificamente a uma prática ascética comum entre os sábios, qual seja, o cultivo voluntário do silêncio (mauna). [Refere-se igualmente ao fato de o conhecimento supremo dos sábios não poder ser comunicado senão pelo silêncio, o qual reflete, no domínio dos sons e da audição, a Realidade absoluta e incondicionada, que não pode ser reduzida a nenhuma forma. (N.T.)] firmado na visão.

2.57 Aquele que é desapegado em tudo [e que] nem se alegra nem se repugna diante desta [ou] daquela [experiência] auspiciosa [ou] funesta – sua gnose encontra-se bem estabelecida.

2.58 E quando recolhe completamente seus sentidos em relação aos objetos dos sentidos, como a tartaruga [recolhe seus] membros, sua gnose encontra-se bem estabelecida.

2.59 Para a essência-incorporada (dehin) que-se-abstém-de-alimento 56 O adjetivo nirāhāra (“que se abstém de alimento” ou “que jejua”) refere-se à atitude de ausência de cobiça do aspirante, atitude essa que culmina na não percepção dos objetos. [Refere-se também ao estado do sábio que já não busca satisfação nos objetos dos sentidos, mas sabe que a felicidade é uma característica intrínseca de sua verdadeira natureza, na qual ele repousa permanentemente. (N.T.)] desaparecem os objetos, mas não o sabor. [Com] a visão do Supremo, o sabor também desaparece para ela.

2.60 Entretanto os sentidos agitados arrastam à força até a mente do homem de empenho e discernimento, ó filho-de-Kuntī.

2.61 Controlando todos esses [sentidos], jungido [e] atento a Mim, que ele se sente [numa postura confortável]. Pois encontra-se bem estabelecida a gnose daquele cujos sentidos estão sob controle.

2.62 [Quando] um homem contempla os objetos, nasce o contato-direto com eles. Do contato-direto brota o desejo; do desejo produz-se a ira.

2.63 Da ira vem a confusão; da confusão, a perturbação da memória 57A palavra smriti, “memória”, é usada aqui num sentido específico: o de “mente presente” ou mesmo de “consciência atenta”. Por isso, a smriti-vibhrama, ou “perturbação da memória”, pode ser equiparada a um distúrbio da cognição. O composto buddhi-nāsha, “destruição de buddhi”, por outro lado, pode ser interpretado no limite como um “colapso  nervoso”, como sugere R. C. Zaehner (1966), muito embora tenha conotações mais profundas. Isso porque a perda de buddhi implica uma desorganização profunda da personalidade humana, tornando a mente incapaz de efetuar o discernimento essencial para o crescimento interior e a consecução da libertação espiritual.; da perturbação da memória, a destruição da faculdade-da-sabedoria. Com a destruição da faculdade-da-sabedoria, [o homem] se perde.

2.64 [Embora] se mova com os sentidos entre os objetos, o eu bem governado, separado da paixão e da aversão mediante  [a aplicação dos] autocontroles 58O original sânscrito usa o caso instrumental no plural (“por meio de controles”, vashyaih)., aproxima-se da graça serenidade 59A palavra prasāda refere-se à total quietude interior por meio da qual a pessoa se torna apta a receber a graça (prasāda) de Deus. Não há dúvida de que o autor do Bhagavad-Gītā tinha ciência dessa dupla conotação.

2.65 [Ao alcançar] a graça-serenidade, surge para ele a cessação de todo sofrimento. Para o [homem] de mente clara, a faculdade-da-sabedoria se estabelece firmemente de imediato.

2.66 Não há faculdade-da-sabedoria para o não jungido 60A pessoa que não controla seus sentidos não tem acesso ao buddhi único mencionado em 2.41.. E para o não jungido tampouco há totalização 61Bhāvanā é um termo complicado de traduzir para o inglês [e para o português]. As traduções usuais, como “desenvolvimento” ou “meditação”, parecem inadequadas ou insuficientes. A palavra é formada a partir do radical bhū (“tornar-se”, “vir-a-ser”).. Para quem não se totaliza não há paz 62Se a gnose (prajnā) é o aspecto cognitivo da experiência extática (samādhi), a paz é seu aspecto emotivo. A paz verdadeira, que não acaba, só vem com a libertação suprema.. De onde [poderia vir] a felicidade para quem não tem paz?

2.67 Quando a mente é regida pelos sentidos divagantes, ela leva embora a gnose como o vento [leva embora] um navio no mar.

2.68 Portanto, ó [Arjuna] dos braços fortes, encontra-se bem estabelecida a gnose daquele cujos sentidos estão completamente recolhidos em relação aos objetos dos sentidos.

2.69 Naquilo que é noite para todos os seres encontra-se desperto o [homem] controlado. Aquilo em que os seres estão despertos é a noite para o sábio dotado de visão. 63Esse versículo pode ser interpretado segundo a psicanálise: a “noite” simboliza o inconsciente, que o yogin transmuta em supraconsciência. Por outro lado, quando ele se encontra no estado de êxtase (samādhi), a consciência empírica do espaço-tempo se torna “noite” para ele, pois encontra-se abaixo do limite inferior da sua consciência. [Exceto no estado de realização espontânea ou realização natural (sahaja-samādhi) do jīvanmukta, o ser “liberto em vida”, cuja superconsciência implica e engloba todas as modalidades de consciência, incluindo a consciência comum espaço-temporal do estado de vigília. (N.T.)]

2.70 Assim como as águas entram no oceano, que não se agita [embora esteja sempre] cheio, assim também todos os desejos entram nele; é ele, e não o desejador dos desejos, quem alcança a paz 64O desapego não é a repressão, mas antes a “superlimação” (não mera sublimação) de todos os desejos, que se fundem numa única volição dinâmica direcionada para a autotranscendência. Ver Brihadāranyaka-Upanishad 4.3.21. Formulei a distinção entre sublimação e superlimação em G. Feuerstein, Sacred Sexuality: The Erotic Spirit in the World’s Great Religions (Rochester, Vt.: Inner Traditions, 2003), p. 197.

2.71 Esse homem (pumām) que, deixando para trás todos os desejos, se movimenta sem nada ansiar, sem [a ideia de] “meu”, sem o sentido-do–ego – ele se aproxima da paz 65A realização da paz (shānti) pressupõe uma reorganização completa da estrutura psíquica, em decorrência da qual a pessoa não renasce, mas se funde ao fundamentouniversal (o brahma-nirvāna do versículo 2.72). Entretanto esse estado de libertação não envolve o desejado despertar superior no corpo eterno de Deus, também ensinado por Krishna.

2.72 Esse é o estado de Brahma, ó filho-de-Prithā. Alcançando-o, [o homem] não é [mais] iludido. Nele repousando também na última hora, [ou seja, na hora da morte,] ele alcança a extinção no fundamento-universal (brahma-nirvāna) 66Esse versículo indica os dois tipos ou estágios ou, ainda, modalidades de libertação espiritual. O primeiro é jīvanmukti (“libertação em vida”), a emancipação ainda no corpo físico. O segundo é videhamukti (“libertação fora do corpo”), que ocorre com a completa desintegração das estruturas psicossomáticas do indivíduo. Videhamukti, na minha opinião, é a fusão com o fundamento-universal, ou seja, com a forma cósmica de brahman, também chamado prakriti-pradhāna ou “alicerce do cosmo”. [Por outro lado, na opinião de todos os comentadores tradicionais, o termo brahman tem, nesse versículo e em todo o livro, o mesmo sentido que tem nos Upanishads, designando portanto o Espírito Universal Incondicionado, princípio, fim e essência de toda realidade, do qual todas as coisas em  todos os mundos são manifestações parciais e transitórias. Nessa interpretação, a tradução do final do versículo seria “ele alcança a extinção no Absoluto”. (N.T.)]

Notas de Rodapé

  • 1
    Sobre o epíteto Madhusūdana, atribuído a Krishna, ver a nota 4 em 1.14.
  • 2
    O povo védico se diferenciava dos outros povos por sua conduta “nobre” (ārya), contraposta à conduta bárbara. O fato de designarem-se como arianos foi muitas vezes interpretado em termos raciais, mas essa noção caiu em descrédito depois das alegações dos ideólogos e dos apologistas da guerra do Terceiro Reich. A antiga ideia de que os arianos invadiram o norte da Índia por volta de 1500 a.C., expulsando ou subjugando a população nativa, tem sido seriamente questionada, de tal modo que o próprio entendimento racial da palavra ārya passou a ser posto em dúvida.
  • 3
    A palavra klaibya (“efeminação”) é derivada do adjetivo klība = “emasculado”, “pouco viril”, “covarde”.
  • 4
    Sobre o epíteto “filho-de-Prithā” (Pārtha), aplicado a Arjuna, ver a nota 18 em 1.25.
  • 5
    O epíteto Paramtapa, aplicado a Arjuna, significa “Flagelo de Outrem” [ou seja, dos inimigos].
  • 6
    Arisūdana significa “matador do inimigo” (ari).
  • 7
    Esse versículo, como os três seguintes, foi composto na cadência trishtubh, que geralmente tem 44 sílabas (4 versos de 11 sílabas), em lugar da cadência shloka, de 16 sílabas, em que a maior parte do Gītā é composta. Aqui, entretanto, os dois primeiros versos da estrofe 6 têm ambos uma sílaba a mais (o que é permitido nessa cadência).
  • 8
    Svabhāva, aqui traduzido por “ser-próprio”, é um dos conceitos mais importantes do Mahābhārata e do Gītā. Vai além da “natureza íntima” ou da “psique”. Também representa o senso de dever que nasce da posição que a pessoa ocupa na sociedade em razão de seu nascimento. Assim, um guerreiro como o príncipe Arjuna – se não estiver perplexo ou corrompido – ver-se-ia vinculado ao dever inquestionável de proteger o povo e a lei moral e espiritual do país. Em outras palavras, o svabhāva de Arjuna está intimamente ligado ao seu destino de guerreiro.
  • 9
    O termo kārpanya, aqui traduzido por “pena”, é derivado da mesma raiz verbal do termo kripā. Parece sugerir um sentimento um pouco menos sereno que a compaixão (karunā).
  • 10
    Sobre o epíteto Gudākesha, aplicado a Arjuna, ver a nota 17 em 1.24.
  • 11
    Sobre o epíteto Hrishīkesha, aplicado a Krishna, ver a nota 5 em 1.15.
  • 12
    Sobre o epíteto Govinda, aplicado a Krishna, ver a nota 22 em 1.32.
  • 13
    O texto em sânscrito diz “lamentaste” (anvashocas tvam).
  • 14
    O texto em sânscrito diz gata-asūn-agata-asūn, “sopros vitais idos, sopros vitais não idos”. A palavra asu, aqui usada no plural, é um sinônimo de prāna e significa “força vital” ou “respiração”.
  • 15
    Essa estrofe adicional foi composta na cadência trishtubh.
  • 16
    A essência-incorporada (dehin), ou simplesmente o “incorporado”, é o Si Mesmo em seu aspecto imanente de espírito ou princípio vital (jīva) do ser vivente. Em outras partes do Gītā, também é chamado dehabhrit (“aquele que usa o corpo como uma veste”) e shārīrin (“incorporado”).
  • 17
    Em seu comentário sobre esse versículo, Shri Shankara interpreta mātrā (“medida/matriz”; aqui, “materiais”) no sentido específico de tanmātra (de tad “aquilo” + mātrā) ou “elemento sutil”, a saber, os princípios sutis do som, da textura, da forma, do gosto e do cheiro.
  • 18
    Sobre o epíteto “filho-de-Kuntī” (Kaunteya), aplicado a Arjuna, ver a nota 19 em 1.27.
  • 19
    Os pares-de-opostos (dvandva) são qualidades contrárias como o calor e o frio, a umidade e a secura, que tendem a causar sofrimento.
  • 20
    Sama é um termo importante na filosofia de Krishna. Em 2.48, o próprio Yoga é definido como samatva, “igualdade” ou “equanimidade”; e a experiência que coroa todo o Yoga é a “visão da igualdade” (sama-darshana), em que todos os seres e todas as coisas – grandes ou pequenos – são vistos como Um único ser sempre igual a Si Mesmo e, portanto, aparecem todos como dotados do mesmo valor. A visão da igualdade depende de uma equanimidade e de um contentamento profundos, que permitem ao praticante de Yoga reagir sem agitação nem fortes predisposições kármicas às experiências agradáveis e desagradáveis.
  • 21
    O epíteto Purusharshabha (de purusha + rishabha), aplicado a Arjuna, significa literalmente “Touro [entre os] Homens”.
  • 22
    A imortalidade, aqui, significa a libertação espiritual derradeira (moksha). Como observa Sarvepalli Radhakrishnan (1948) em seu excelente comentário sobre esse versículo: “A vida eterna é diferente da sobrevivência à morte. Esta se dá com todos os seres que tomaram um corpo; aquela é a transcendência da vida e da morte.”
  • 23
    O sentido de anta (“fim”), nesse contexto, precisa ser esclarecido. Nem Shankara nem Abhinavagupta comentam especificamente essa palavra. Radjakrishnan (1948) usa “conclusão”; Sargeant (1984), “certeza”; Hill (1928/1966) e van Buitenen (1981), “limite”. O fim de ambas as proposições – ou seja, sua justificativa final – é a realização propriamente dita da liberdade absoluta. Os libertos são os verdadeiros conhecedores. “Veem” sem nenhuma intermediação que aquilo que é sempre é. Para as outras pessoas, as duas proposições – a de que aquilo que não é não pode vir a ser e aquilo que é não pode deixar de ser – são pouco mais que opiniões.
  • 24
    A palavra tattva significa literalmente “ipseidade” (o que Immanuel Kant chamou de Ding an sich ou “coisa em si”) e refere-se à natureza de uma coisa como ela realmente é.O tattva-darshin, “aquele que vê a Realidade”, é a pessoa cujo conhecimento é “portador da verdade” (ritambhara), como diz Patanjali em seu Yoga-Sūtra (1.48). A “coisa” de que aqui se trata é a “coisa” suprema e derradeira, que não é “nada em particular” – a Realidade permanente da qual, antes da iluminação, só podemos apreender lampejos.
  • 25
    Sobre “distribuído”, ver a nota 33 em 4.32.
  • 26
    Essa estrofe está na cadência trishtubh.
  • 27
    Essa estrofe também está na cadência trishtubh.
  • 28
    Essa estrofe está na cadência trishtubh. Ver a nota 7 em 2.5.
  • 29
    Abhinavagupta (em cujo comentário esse versículo tem o número 2.30) pergunta: “Se esse Si Mesmo é, portanto, indestrutível, por que [essa verdade] não é apreendida por todos?”. Responde à própria pergunta declarando que somente algumas pessoas chegam a realizar o Eu, sendo essa Realização necessária para que sua natureza maravilhosa seja percebida.
  • 30
    Essa estrofe também está na cadência trishtubh, mas tem uma sílaba a mais no segundo verso.
  • 31
    Literalmente: “Portanto, não te deves lamentar por todos os seres” (sarvāni bhūtāni).
  • 32
    Como o conceito de svabhāva (“ser-próprio”), o conceito correlato svadharma (“leiprópria”) é noção crucial na ética do Mahābhārata. Trata-se, em resumo, da conduta normativa que nasce do svabhāva. No caso de Arjuna, o fato de ter nascido na casta guerreira facultava-lhe inúmeros privilégios mas também impunha-lhe muitas obrigações, especialmente as de proteger o povo e preservar a lei de sua sociedade, lei essa que tinha um fundamento espiritual.
  • 33
    A expressão dharmya-yuddha tem sido frequentemente traduzida por “guerra justa”. O termo dharmya, no entanto, implica muito mais que isso, pois o conceito de dharma vai além da mera “justiça”. O dharma está ligado à própria ordem cósmica (rita), responsável pela sucessão regular das estações e pelo movimento ritmado dos astros. Dharma realiza no nível humano o que rita realiza no nível ambiental mais amplo.
  • 34
     O termo yadricchā (“acaso”) é usado aqui em sentido meio vago, pois, num universo regido pela mão de ferro da lei do karma, o acaso não existe. Alguns tradutores verteram o termo por “boa fortuna” ou “sorte”. Podemos indagar que sorte poder haver em ser morto e ir para o céu, visto que o céu, tradicionalmente, é considerado muito inferior à libertação espiritual. O sentido literal de yadricchā (de yad, “o que”, + ricchā) é “aquilo que é infligido” ou, num nível mais coloquial, “o que acontece”.
  • 35
    Literalmente, “ultrapassa a morte” (maranād atiricyate).
  • 36
    Poderíamos ter a impressão de que, nesse trecho, Krishna está tentando fazer seu discípulo se sentir culpado. É fato que o divino mestre usa argumentos convencionais para motivar o discípulo. Mas temos de recordar a importante qualificação do versículo 2.10, segundo a qual Hrishīkesha comunicou seus ensinamentos “como quem ri” (prahasann iva). É fácil entender daí que ele estava, com divina benignidade, provocando Arjuna pela zombaria. Para produzir no discípulo uma mente clara (sattva), o mestre precisa antes de tudo dinamizar a mente letárgica, introduzindo nela a qualidade rajas. A progressão, portanto, é tamas g rajas g sattva. É claro que, no fim, as três qualidades-primárias (guna) têm de ser transcendidas para que ocorra a libertação espiritual. Do ponto de vista mais elevado, até sattva, o princípio de lucidez, representa uma limitação. (Sobre os gunas, ver a nota 44 em 2.45.)
  • 37
    Buddhi é um termo crucial do Yoga e do Sāmkhya. Tem ampla gama de significados, entre os quais os de “mente”, “cognição”, “entendimento”, “sabedoria” e “faculdade-da-  sabedoria” (ou mente superior). Nas tradições do Yoga e do Sāmkhya, significa um aspecto particular da mente, a saber, a faculdade responsável pelo discernimento entre o real e o irreal – o tipo de sabedoria sem o qual o crescimento espiritual não é possível. Embora a noção de “faculdades mentais” já não seja muito aceita pelos psicólogos, esse conceito parece adequado no contexto da ontologia e da psicologia do Yoga e do Sāmkhya. Nesse sentido, buddhi será traduzido aqui quer por “sabedoria”, quer por “faculdade-dasabedoria”.
  • 38
    A tradição do Sāmkhya, intimamente ligada ao Yoga, trata da enumeração (donde samkhya, “número”) das categorias básicas (tattva) da existência, tais como o Espírito (purusha) e a Matéria (prakriti, literalmente “procriadora”). O primeiro não tem divisões, mas da segunda procedem as outras categorias que constituem o universo tal como o conhecemos. São elas: a mente superior ou faculdade-da-sabedoria (buddhi), o princípio de individuação ou sentido-do-ego (ahamkāra), a mente inferior (manas), as dez faculdades (indriya) de cognição e ação, os cinco princípios elementais (tanmātra) e os cinco elementos corporais (bhūta).
  • 39
    Vyavasāya, traduzido aqui por “determinação”, também já foi vertido como “resolução” e “vontade”.
  • 40
    O epíteto Kurunandana, aplicado a Arjuna, significa “alegria ou deleite (nandana) dos Kurus”. Aqui, a palavra Kuru é usada em sentido amplo e não se refere somente aos descendentes do rei Dhritarāshtra, mas a todos os descendentes do antigo rei Kuru, entre os quais se incluem não só os cem filhos-de-Dhritarāshtra, mas também os cinco filhos do rei Pāndu e todos os seus predecessores; a dinastia dos Kurus originou-se no deus Brahma e teve muitos reis, entre os quais Yayāti (ver a linhagem da dinastia Yadu, à qual pertencia Krishna, na nota 43 em 11.41). Deste, porém, passou a Puru, depois a treze outros reis, a Bharata, a dez outros reis, e por fim a Kuru.
  • 41
    Veda significa aqui a revelação védica consubstanciada nas quatro coletâneas – RigVeda, Yajur-Veda, Sāma-Veda e Atharva-Veda – e nos textos sagrados explicativos a elas associados desde tempos muito antigos.
  • 42
    Nesse caso, os comentários de Krishna não precisam ser entendidos como uma condenação da própria tradição védica revelada, mas sim daqueles que têm para com ela uma atitude fundamentalista. Ver também 2.46.
  • 43
    A mente extática é uma mente plenamente concentrada. Nesse sentido, o termo samādhi poderia ser traduzido aqui por “concentração”.
  • 44
    Traigunya, a “tríade das qualidades-primárias”, refere-se às três qualidades fundamentais (guna) da existência cósmica (prakriti): o princípio de lucidez e paz (sattva), o princípio de dinamismo (rajas) e o princípio de inércia (tamas). Por meio de infinitas combinações, essas três qualidades – guna significa “filamento” – entretecem as miríades de fenômenos do universo manifestado.
  • 45
    Sobre o termo dvandva (“pares-de-opostos”), ver a nota 19 em 2.15.
  • 46
    O composto nitya-sattva-stha pode significar quer “repousando no eterno sattva”, quer “repousando eternamente em sattva”. Essa segunda alternativa parece mais provável. Nesse contexto particular, a palavra sattva pode ser traduzida por “verdade” ou “realidade”, visto não poder referir-se ao sattva-guna, uma vez que Arjuna já recebeu a instrução de ir além das três qualidades primárias. A exortação de repousar sempre em sattva significa  cultivar a equanimidade, que é a manifestação de um estado mental sátvico. Quando a mente se encontra embebida em sattva, é capaz de dar o salto para a realização do Si Mesmo ou libertação espiritual. O termo sattva é um dos sinônimos de buddhi.
  • 47
    Note a inicial maiúscula em “senhor de Ti” (ātmavat). A pessoa mundana é senhora de si, acha que manda na própria vida e vive centrada no ego. Mas o aspirante espiritual procura se identificar com o Si Mesmo transcendente, ou, antes, procura deixar que a consciência de sua permanente identidade com o Si Mesmo transcendente se afirme com mais força que sua identificação provisória com a mente e a individualidade.
  • 48
    Essa estrofe foi interpretada por alguns como um aviltamento dos Vedas, mas uma leitura cuidadosa mostra que isso não é verdade. O que Krishna está dizendo é que, para a pessoa que realizou a Si Mesma, todo o conhecimento do mundo, incluindo a grande sabedoria encontrada na revelação védica, perde a utilidade, pois o grande objetivo a que se refere essa sabedoria, ou seja, a libertação, já foi alcançado.
  • 49
    O termo técnico phala, “fruto”, implica mais que “resultado”. Designa as consequências kármicas.
  • 50
    Sobre o epíteto Dhanamjaya, aplicado a Arjuna, ver a nota 7 em 1.15.
  • 51
    A palavra vipratipannā, traduzida aqui por “distraída”, indica uma mente agitada. É derivada da raiz pad (“cair”) + vi (“dis”) + prati (“na direção de/em relação a”). Foi traduzida para o inglês por disregarding (“desatenta” – Sargeant 1984), averse (“avessa” – Edgerton 1944) e not disturbed (“não perturbada” – Bhaktivedanta Swami 1983).
  • 52
    Sobre o epíteto Keshava, aplicado a Krishna, ver a nota 21 em 1.31.
  • 53
    O termo sânscrito prajnā corresponde ao grego gnosis, que significa uma espécie superior (“mística”) de conhecimento. O uso do equivalente grego me pareceu mais adequado que repetir o termo “sabedoria”, que combina bem com buddhi.
  • 54
    A palavra dhī é um antigo termo védico que designa a visão inspirada de um vidente (rishi). Nesse sentido, sthita-dhī denota “[aquele cuja] visão está firme/estável”. É um sinônimo do termo composto sthita-prajnā (“firmado na gnose”), encontrado na mesma estrofe.
  • 55
    Muni é uma palavra muito usada para designar o “sábio”. Refere-se especificamente a uma prática ascética comum entre os sábios, qual seja, o cultivo voluntário do silêncio (mauna). [Refere-se igualmente ao fato de o conhecimento supremo dos sábios não poder ser comunicado senão pelo silêncio, o qual reflete, no domínio dos sons e da audição, a Realidade absoluta e incondicionada, que não pode ser reduzida a nenhuma forma. (N.T.)]
  • 56
     O adjetivo nirāhāra (“que se abstém de alimento” ou “que jejua”) refere-se à atitude de ausência de cobiça do aspirante, atitude essa que culmina na não percepção dos objetos. [Refere-se também ao estado do sábio que já não busca satisfação nos objetos dos sentidos, mas sabe que a felicidade é uma característica intrínseca de sua verdadeira natureza, na qual ele repousa permanentemente. (N.T.)]
  • 57
    A palavra smriti, “memória”, é usada aqui num sentido específico: o de “mente presente” ou mesmo de “consciência atenta”. Por isso, a smriti-vibhrama, ou “perturbação da memória”, pode ser equiparada a um distúrbio da cognição. O composto buddhi-nāsha, “destruição de buddhi”, por outro lado, pode ser interpretado no limite como um “colapso  nervoso”, como sugere R. C. Zaehner (1966), muito embora tenha conotações mais profundas. Isso porque a perda de buddhi implica uma desorganização profunda da personalidade humana, tornando a mente incapaz de efetuar o discernimento essencial para o crescimento interior e a consecução da libertação espiritual.
  • 58
    O original sânscrito usa o caso instrumental no plural (“por meio de controles”, vashyaih).
  • 59
    A palavra prasāda refere-se à total quietude interior por meio da qual a pessoa se torna apta a receber a graça (prasāda) de Deus. Não há dúvida de que o autor do Bhagavad-Gītā tinha ciência dessa dupla conotação.
  • 60
    A pessoa que não controla seus sentidos não tem acesso ao buddhi único mencionado em 2.41.
  • 61
    Bhāvanā é um termo complicado de traduzir para o inglês [e para o português]. As traduções usuais, como “desenvolvimento” ou “meditação”, parecem inadequadas ou insuficientes. A palavra é formada a partir do radical bhū (“tornar-se”, “vir-a-ser”).
  • 62
    Se a gnose (prajnā) é o aspecto cognitivo da experiência extática (samādhi), a paz é seu aspecto emotivo. A paz verdadeira, que não acaba, só vem com a libertação suprema.
  • 63
    Esse versículo pode ser interpretado segundo a psicanálise: a “noite” simboliza o inconsciente, que o yogin transmuta em supraconsciência. Por outro lado, quando ele se encontra no estado de êxtase (samādhi), a consciência empírica do espaço-tempo se torna “noite” para ele, pois encontra-se abaixo do limite inferior da sua consciência. [Exceto no estado de realização espontânea ou realização natural (sahaja-samādhi) do jīvanmukta, o ser “liberto em vida”, cuja superconsciência implica e engloba todas as modalidades de consciência, incluindo a consciência comum espaço-temporal do estado de vigília. (N.T.)]
  • 64
    O desapego não é a repressão, mas antes a “superlimação” (não mera sublimação) de todos os desejos, que se fundem numa única volição dinâmica direcionada para a autotranscendência. Ver Brihadāranyaka-Upanishad 4.3.21. Formulei a distinção entre sublimação e superlimação em G. Feuerstein, Sacred Sexuality: The Erotic Spirit in the World’s Great Religions (Rochester, Vt.: Inner Traditions, 2003), p. 197.
  • 65
    A realização da paz (shānti) pressupõe uma reorganização completa da estrutura psíquica, em decorrência da qual a pessoa não renasce, mas se funde ao fundamentouniversal (o brahma-nirvāna do versículo 2.72). Entretanto esse estado de libertação não envolve o desejado despertar superior no corpo eterno de Deus, também ensinado por Krishna.
  • 66
    Esse versículo indica os dois tipos ou estágios ou, ainda, modalidades de libertação espiritual. O primeiro é jīvanmukti (“libertação em vida”), a emancipação ainda no corpo físico. O segundo é videhamukti (“libertação fora do corpo”), que ocorre com a completa desintegração das estruturas psicossomáticas do indivíduo. Videhamukti, na minha opinião, é a fusão com o fundamento-universal, ou seja, com a forma cósmica de brahman, também chamado prakriti-pradhāna ou “alicerce do cosmo”. [Por outro lado, na opinião de todos os comentadores tradicionais, o termo brahman tem, nesse versículo e em todo o livro, o mesmo sentido que tem nos Upanishads, designando portanto o Espírito Universal Incondicionado, princípio, fim e essência de toda realidade, do qual todas as coisas em  todos os mundos são manifestações parciais e transitórias. Nessa interpretação, a tradução do final do versículo seria “ele alcança a extinção no Absoluto”. (N.T.)]
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